sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
Somos feitos de pó de estrelas….
A minha mãe teria feito hoje 90 anos se a vida não lhe tivesse pregado uma terrível partida: aos 58 anos foi-lhe diagnosticada a doença de Alzheimer, que durante treze anos a foi destruindo dia a dia .
Mãe
Como eu me lembro bem, mãe.
Catorze anos seria talvez a minha idade, uma colega do liceu
disse que tu eras a senhora mais bonita da cidade
E eu fiquei toda cheia de vaidade.
Lembro-me de tanta outra coisa mãe
Do linho esticado dentro do bastidor
e dos teus bordados em ponto pé-de flor,
em matiz, ponto de sombra ou de grilhão,
ao sabor da imaginação, como o vestido da minha comunhão.
No dia da minha comunhão, com o vestido que foi bordado pela minha mãe (na foto, à esquerda)
Lembro-me dos cozinhados que fazias com paixão;
chamavas-lhe quitutes, mãe.
Receita portuguesa, brasileira, italiana,
ainda hoje os teus quitutes têm fama
entre os amigos que os saborearam.
Ainda há dias alguns os recordaram.
Lembro-me ainda que não era só o sabor, era o aspecto.
Em tudo colocavas muito afecto
e sempre a tua a sensibilidade infinda.
Além de sensível eras tolerante, corajosa,
lutadora, criativa, generosa.
Como eu recordo, mãe, tantas histórias inventadas por ti,
em que o sabiá e a surucucu contracenavam com o colibri,
com a jibóia e o bicho tatu.
Como eu recordo, mãe, a tua lindíssima voz de soprano
cantando árias de Verdi, de Puccini,
(da Madame Butterfly, da Traviata),
do barbeiro de Sevilha de Rossini,
ou ainda Shubert, a serenata,
tentando eu acompanhar-te no piano
que, por falta de talento, mal tocava,
o que algum desgosto te causava.
Um dia, já a tua mente muito vária,
apercebi-me de que não gravara a tua voz
Tentei então que cantasses uma ária
para ficar com os registos entre nós
Tarde demais
De reconhecer a música tu foste incapaz
Tinhas apenas cinquenta e oito anos.
E a partir daí a doença, tão voraz,
foi-te destruindo dia a dia a mente,
dia após dia causando mais danos
e eu, recusando-me a aceitar tais desenganos,
era contigo que me revoltava, mãe.
Que foi feito de ti mãe outrora tão sensata, inteligente?
Que foi feito da tua sensibilidade,
da tua coragem e força de vontade?
Porque te deixaste assim destruir, mãe?
Ficaram as fotos, a recordação, tanto vazio no meu coração,
tantas lembranças, algumas em bocados.
Como herança deixaste o bastidor,
as partituras, as receitas, os bordados.
Ficaram sentimentos de culpa e muita dor.
Por dizer ficou ainda tanto amor.
O olhar da minha neta mais velha recorda-me o seu ,e disso dou conta num outro poema, escrito quando ela tinha cerca de um ano
Mensagem
Mãe, talvez neste momento de uma longínqua estrela me estejas a olhar.
Quando olho o céu procuro vê-la mas não a sei distinguir entre as demais.
Podias mandar alguns sinais, talvez por infravermelho ou por radar.
Manda uma mensagem para o Monte Palomar,
quem sabe, algum telescópio consegue captar.
Entretanto eu vou continuar a olhar o céu.
De mim pouco ou nada há a dizer, mas talvez gostes de saber
que dei em escrever, escrevo poesias
porém, muito aquém daquilo a que, por certo, aspirarias.
Tenho, no entanto, uma notícia fabulosa para te dar,
és bisavó de uma menina cujo olhar
tem um encanto tal, tem tal magia, que nele eu vejo o teu
É provável que tendo nós nascido do pó de estrelas, um dia voltemos às origens
Poeira cósmica
Todos os elementos
que constituem a vida
tiveram, à partida,
há muitos milhões de anos,
origem nas estrelas.
Foi da poeira cósmica
que a espécie humana nasceu
e com ela, a poesia e a lira de Orfeu.
E porque falo de estrelas termino com excertos de um texto publicado em Ciência Hoje
Um enxame de estrelas antigas
Conhecemos pelo menos 150 enxames globulares, verdadeiras colecções de estrelas velhas, que orbitam a nossa Galáxia, a Via Láctea. Uma imagem de Messier 107, obtida com o instrumento Wide Field Imager, montado no telescópio do Observatório de La Silla, no Chile, mostra a estrutura de uma destas formações de forma extremamente detalhada. O estudo destes enxames revela novos avanços sobre a história da nossa Galáxia e de como as estrelas evoluem.
O Messier 107, também conhecido como NGC 6171, é uma antiga e compacta família de estrelas situada a 21 mil anos-luz. É ainda uma metrópole bastante activa: milhares de estrelas em enxames globulares como este estão concentradas num espaço que é apenas vinte vezes a distância entre o nosso Sol e a nossa vizinha estelar mais próxima, Alfa Centauro. Um número significativo destas evoluíram já para a fase de gigante vermelha, um dos últimos estádios da vida das estrelas, apresentando uma cor amarelada (....)
Os enxames globulares encontram-se entre os objectos mais antigos do Universo e como as estrelas no seu interior se formaram a partir da mesma nuvem de matéria interstelar e aproximadamente ao mesmo tempo – tipicamente há dez mil milhões de anos – são todas estrelas de pequena massa, uma vez que as leves queimam o seu combustível de hidrogénio muito mais lentamente do que as de grande massa. Os enxames globulares formaram-se durante as fases iniciais das suas galáxias hospedeiras e, por isso, o estudo destes objectos fornece-nos informação importante(...).
Mãe
Como eu me lembro bem, mãe.
Catorze anos seria talvez a minha idade, uma colega do liceu
disse que tu eras a senhora mais bonita da cidade
E eu fiquei toda cheia de vaidade.
Lembro-me de tanta outra coisa mãe
Do linho esticado dentro do bastidor
e dos teus bordados em ponto pé-de flor,
em matiz, ponto de sombra ou de grilhão,
ao sabor da imaginação, como o vestido da minha comunhão.
No dia da minha comunhão, com o vestido que foi bordado pela minha mãe (na foto, à esquerda)
Lembro-me dos cozinhados que fazias com paixão;
chamavas-lhe quitutes, mãe.
Receita portuguesa, brasileira, italiana,
ainda hoje os teus quitutes têm fama
entre os amigos que os saborearam.
Ainda há dias alguns os recordaram.
Lembro-me ainda que não era só o sabor, era o aspecto.
Em tudo colocavas muito afecto
e sempre a tua a sensibilidade infinda.
Além de sensível eras tolerante, corajosa,
lutadora, criativa, generosa.
Como eu recordo, mãe, tantas histórias inventadas por ti,
em que o sabiá e a surucucu contracenavam com o colibri,
com a jibóia e o bicho tatu.
Como eu recordo, mãe, a tua lindíssima voz de soprano
cantando árias de Verdi, de Puccini,
(da Madame Butterfly, da Traviata),
do barbeiro de Sevilha de Rossini,
ou ainda Shubert, a serenata,
tentando eu acompanhar-te no piano
que, por falta de talento, mal tocava,
o que algum desgosto te causava.
Um dia, já a tua mente muito vária,
apercebi-me de que não gravara a tua voz
Tentei então que cantasses uma ária
para ficar com os registos entre nós
Tarde demais
De reconhecer a música tu foste incapaz
Tinhas apenas cinquenta e oito anos.
E a partir daí a doença, tão voraz,
foi-te destruindo dia a dia a mente,
dia após dia causando mais danos
e eu, recusando-me a aceitar tais desenganos,
era contigo que me revoltava, mãe.
Que foi feito de ti mãe outrora tão sensata, inteligente?
Que foi feito da tua sensibilidade,
da tua coragem e força de vontade?
Porque te deixaste assim destruir, mãe?
Ficaram as fotos, a recordação, tanto vazio no meu coração,
tantas lembranças, algumas em bocados.
Como herança deixaste o bastidor,
as partituras, as receitas, os bordados.
Ficaram sentimentos de culpa e muita dor.
Por dizer ficou ainda tanto amor.
O olhar da minha neta mais velha recorda-me o seu ,e disso dou conta num outro poema, escrito quando ela tinha cerca de um ano
Mensagem
Mãe, talvez neste momento de uma longínqua estrela me estejas a olhar.
Quando olho o céu procuro vê-la mas não a sei distinguir entre as demais.
Podias mandar alguns sinais, talvez por infravermelho ou por radar.
Manda uma mensagem para o Monte Palomar,
quem sabe, algum telescópio consegue captar.
Entretanto eu vou continuar a olhar o céu.
De mim pouco ou nada há a dizer, mas talvez gostes de saber
que dei em escrever, escrevo poesias
porém, muito aquém daquilo a que, por certo, aspirarias.
Tenho, no entanto, uma notícia fabulosa para te dar,
és bisavó de uma menina cujo olhar
tem um encanto tal, tem tal magia, que nele eu vejo o teu
É provável que tendo nós nascido do pó de estrelas, um dia voltemos às origens
Poeira cósmica
Todos os elementos
que constituem a vida
tiveram, à partida,
há muitos milhões de anos,
origem nas estrelas.
Foi da poeira cósmica
que a espécie humana nasceu
e com ela, a poesia e a lira de Orfeu.
E porque falo de estrelas termino com excertos de um texto publicado em Ciência Hoje
Um enxame de estrelas antigas
Conhecemos pelo menos 150 enxames globulares, verdadeiras colecções de estrelas velhas, que orbitam a nossa Galáxia, a Via Láctea. Uma imagem de Messier 107, obtida com o instrumento Wide Field Imager, montado no telescópio do Observatório de La Silla, no Chile, mostra a estrutura de uma destas formações de forma extremamente detalhada. O estudo destes enxames revela novos avanços sobre a história da nossa Galáxia e de como as estrelas evoluem.
O Messier 107, também conhecido como NGC 6171, é uma antiga e compacta família de estrelas situada a 21 mil anos-luz. É ainda uma metrópole bastante activa: milhares de estrelas em enxames globulares como este estão concentradas num espaço que é apenas vinte vezes a distância entre o nosso Sol e a nossa vizinha estelar mais próxima, Alfa Centauro. Um número significativo destas evoluíram já para a fase de gigante vermelha, um dos últimos estádios da vida das estrelas, apresentando uma cor amarelada (....)
Os enxames globulares encontram-se entre os objectos mais antigos do Universo e como as estrelas no seu interior se formaram a partir da mesma nuvem de matéria interstelar e aproximadamente ao mesmo tempo – tipicamente há dez mil milhões de anos – são todas estrelas de pequena massa, uma vez que as leves queimam o seu combustível de hidrogénio muito mais lentamente do que as de grande massa. Os enxames globulares formaram-se durante as fases iniciais das suas galáxias hospedeiras e, por isso, o estudo destes objectos fornece-nos informação importante(...).
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Bonita homenagem, Regina.
ResponderEliminarSei quanto admiravas e amavas a tua Mãe e quão penoso foi vê-la aguentar uma doença sem retorno. Ficam-te as inúmeras horas que passaste com ela, o legado que te deixou, as qualidades que certamente herdaste, a veia poética, que é cada vez mais rica, a tua generosidade e Amor á Vida.
A tua Mãe orgulha-se de ti, lá na Eternidade, uma Estrela no Universo.
Beijo
Obrigada Virgínia. Também achei lindo o post que colocaste lembrando o teu pai, ou melhor, os teus pais. Não comentei porque tenho andado ocupadíssima com o facto de ter saído o novo livro mas tenho continuado a visitar o teu blogue. Quando apareces?
ResponderEliminarSentimos todos a tua falta
Bjs
Regina
Olá Regina! Como são belos os seus poemas!!!
ResponderEliminarTambém li o texto "Um enxame de estrelas antigas" e acho extraordinário o trabalho das Agências Espaciais que cada vez mais desvendam o Universo conhecido.
Um beijo de muita amizade e admiração.