Hoje, navegando pelo
mesmo encontrei este texto de José Barbedo, ilustrado por Dacosta que partilho convosco
A Peste e o Posto Ipiranga 2 Abril 2020
Que a
desordem e instabilidade sistémica constituíram a base material do projeto de
poder de Bolsonaro já tinha sido aqui escrito.
O APELO de Bolsonaro ao
“retorno à normalidade” no momento em que os casos de Covid 19 disparavam no
Brasil, deixa uma pergunta no ar: quais serão no final das contas, os efeitos
da pandemia no seu governo?
Nas redes sociais, as suas
declarações sobre o novo vírus viraram anedota pública, e o twitter chegou
a tomar a decisão inédita de bloquear vídeos publicados por um Presidente da
República. No Congresso, perdeu base política na confrontação com Governadores
e segmentos mais conservadores. Mas para a ala neoliberal do seu governo, a
agudização da crise pode ser vista como uma oportunidade.
Aos milhões de brasileiros que
vivem em condições sanitárias de vulnerabilidade extrema, Bolsonaro respondeu
que “brasileiro pula em esgoto e não acontece nada”. Com a mesma negligência, o
Presidente negou a necessidade de encerrar escolas, autorizou atividades
religiosas e lotéricas durante a quarentena, e chegou a encomendar uma campanha
publicitária com o slogan “o Brasil não pode parar”.
Para o político que louva a
memória de torturadores em plena assembleia nacional, o sofrimento de centenas
de milhares de brasileiros não passa de um mal menor face aos imperativos
económicos que representa. Afinal quem vai pagar a fatura mais alta, são tudo o
que a extrema direita não precisa: velhos, pobres, presos e índios.
Mais importante para o
executivo deste governo, a pandemia pode gerar o contexto ideal para a
imposição da sua agenda de privações, flexibilização de leis laborais e
liberalização do garimpo em terras indígenas, entre outras atividades e medidas
“urgentes” para alavancar os meios financeiros da terapia de choque¹
que se segue.
Que a desordem e instabilidade
sistémica constituíram a base material do projeto de poder de Bolsonaro já
tinha sido aqui escrito. Agora, o Estado de Calamidade Pública que se anuncia
pode ser a carta branca que o seu “Posto Ipiranga” precisa para vender o que
resta do Brasil.
E veio-me à mente o Poema das Coisas de António Gedeão
Amo o
espaço e o lugar, e as coisas que não falam.
O estar ali, o ser de certo modo,
o saber-se como é, onde é que está e como,
o aguardar sem pressa, e atender-nos
da forma necessária.
Serenas em si mesmas, sempre iguais a si próprias,
esperam as coisas que o desespero as busque.
Abre-se a porta e o próprio ar nos fala.
As cortinas de rede, exactamente aquelas,
a cadeira onde a memória está sentada,
a mesa, o copo, a chávena, o relógio,
o móvel onde alguém permanece encostado
sem volume e sem tempo,
nós próprios, quando os olhos indignados
nas pálpebras se encobrem.
Põe-se a pedra na mão, e a pedra pesa,
pesa connosco, forma um corpo inteiro
Fecha-se a mão, e a mão toma-lhe a forma,
conhece a pedra, entende-lhe o feitio,
sente-a macia ou áspera, e sabe em que lugares.
Abre-se a mão, e a mesma pedra avulta.
Se fosse o amor dos homens
quando se abrisse a mão já lá não estava.