Fuscas em "bebé"
O Fuscas faz hoje os encantos da Rita, do primo com quatro anos ,e do irmão que vai fazer um ano. Mas cães e gatos não fazem só as delícias das crianças como também dos adultos, entre eles pintores e escritores que os evocam nas suas obras. Centremo-nos nos gatos
Comecemos pela pintura citando alguns pintores famosos
Picasso, Dora Maar (com o gato ao colo)
Chagall, Paris pela janela
Quanto à literatura, nomeadamente à poesia, são inúmeros os textos com alusões a gatos .
Seleccionei alguns de entre as múltiplas escolhas possíveis
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Fernando Pessoa
Onírica
Os gatos moles de sono
rolam laranjas de lã.
Mário Quintana
Uma prosa sobre os meus gatos
Perguntaram-me um dia destes
ao telefone
por que não escrevia
poesia (ao menos um poema)
sobre os meus gatos;
mas quem se interessaria
pelos meus gatos,
cuja única evidência
é serem meus (digamos assim)
e serem gatos
(coisa vasta, mas que acontece
a todos os da sua espécie)?
Este poderia
(talvez) ser um tema
(talvez até um tema nobre),
mas um tema não chega para um poema
nem sequer para um poema sobre;
porque é o poema o tema,
forma apenas.
Depois, os meus gatos
escapam de mais à poesia,
ou de menos, o que vai dar ao mesmo,
são muito longe
ou muito perto,
e o poema precisa do tempo certo
de onde possa, como o gato, dar o salto;
o poema que fizesse
faria deles gatos abstractos,
literários, gatos-palavras,
desprezível comércio de que não me orgulharia
(embora a eles tanto lhes desse).
Por fim, não existem «os meus gatos»,
existem uns tantos gatos-gatos,
um gato, outro gato, outro gato,
que por um expediente singular
(que, aliás, também absolutamente lhes desinteressa)
me é dado nomear e adjectivar,
isto é, ocultar,
tendo assim uns gatos em minha casa
e outros na minha cabeça.
Ora só os da cabeça alcançaria
(se alcançasse) o duvidoso processo da poesia.
Fiquei-me por isso por uma prosa,
e mesmo assim excessivamente corrida e judiciosa.
Manuel Pina
Gato e o pássaro
Uma cidade escuta desolada
O canto de um pássaro ferido
É o único pássaro da cidade
E foi o único gato da cidade
Que o devorou pela metade
E o pássaro pára de cantar
O gato pára de ronronar
E de lamber o focinho
E a cidade prepara para o pássaro
Maravilhosos funerais
E o gato que foi convidado
Segue o caixãozinho de palha
Em que deitado está o pássaro morto
Levado por uma menina
Que não pára de chorar
Se soubesse que você ia sofrer tanto
Lhe diz o gato
Teria comido ele todinho
E depois teria te dito
Que tinha visto ele voar
Voar até o fim do mundo
Lá onde o longe é tão longe
Que de lá não se volta mais
Que você teria sofrido menos
Sentiria apenas tristeza e saudades
Não se deve deixar as coisas pela metade.
Jacques Prévert
Poema do gato
Quem há-de abrir a porta ao gato
quando eu morrer?
Sempre que pode
foge prá rua
cheira o passeio
e volta para trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.
Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.
Quando abro a porta corre para mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semi-cerrados, em êxtase,
ronronando.
Repito a festa,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas,
e rosna,
rosna, deliquescente,
abraça-me
e adoremece.
Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?
António Gedeão
Finalmente, dois poemas meus em que faço referência ao meu gato
Sonho
Decidi ir agarrar um sonho.
um sonho distante e desmedido.
Imaginei partir com companhia.
Talvez o meu gato (eu tenho um gato,
o que não acontecia a Gedeão)
mas logo pensei: Não.
Quando visse o sonho a esvoaçar
havia de cuidar que era uma ave.
Gatos e aves nunca se deram bem
à excepção do gato malhado
e da andorinha Sinhá de Jorge Amado.
Pensei então levar alguém, mas quem?
Os nossos sonhos
raramente coincidem com os sonhos de outrem.
Parti sem mais ninguém. Fui de balão.
Não o enchi com hidrogénio,
com hélio, nem ar quente.
Enchi-o simplesmente de ilusão
e assim me aventurei.
Aproveitei as correntes ascendentes,
ao sabor do vento rodopiei no ar,
tempestades e tormentas tive que enfrentar
mas continuei, por vezes sem sentido,
em busca do sonho distante, desmedido.
E quanto mais subia, mais distante o sonho parecia,
até me aperceber que não subia
e que, vertiginosamente,
descia em direcção ao chão.
Talvez tivesse havido uma fuga de ilusão.
Pensei então em frei Gusmão,
nos Montgolfier, em Charles, em Zeppelin e assim,
tentei uma outra vez, e outra,
e outra e ainda mais uma.
Tudo se repetiu como da vez primeira.
Quero ainda tentar mais uma vez, a derradeira.
Mas como hei-de eu encher o meu balão
se é já tão pouca a ilusão, quase nenhuma?
Limites
Ronrona o meu gato estirado no tapete
Ao ritmo da respiração
o dorso afunda-se e alteia
como é normal num gato.
O coração bate apressado,
duas vezes por segundo,
por isso a sua vida é relativamente breve.
Ronrona o meu gato estirado no tapete
indiferente a tudo o que o rodeia.
Ignora raios cósmicos, neutrinos, mesões e leptões,
que atravessam o seu corpo em constante correria
ite e dia, noite e dia.
Não quer saber
se o cosmos tem princípio ou fim
tão pouco o preocupam os seus mistérios
que o homem incessantemente tenta desvendar,
fazendo os limites do universo recuar.
O meu gato, tranquilamente a ronronar,
agita a cauda docemente.
Talvez sonhe com um pássaro a voar
batendo as asas ao de leve
ou talvez sonhe ultrapassar os muros do jardim,
fazendo recuar, assim, os limites do seu mundo.