quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
O Portugal de sucesso
Diário de um professor- Fome nas escolas
Publicado em 19 de Novembro de 2010 por Arnaldo Antunes
Ontem, uma mãe lavada em lágrimas veio ter comigo à porta da escola. Que não tinha um tostão em casa, ela e o marido estão desempregados e, até ao fim do mês, tem 2 litros de leite e meia dúzia de batatas para dar aos dois filhos. Acontece que o mais velho é meu aluno. Anda no 7.º ano, tem 12 anos mas, pela estrutura física, dir-se-ia que não tem mais de 10. Como é óbvio, fiquei chocado. Ainda lhe disse que não sou o Director de Turma do miúdo e que não podia fazer nada, a não ser alertar quem de direito, mas ela também não queria nada a não ser desabafar. De vez em quando, dão-lhe dois ou três pães na padaria lá da beira, que ela distribui conforme pode para que os miúdos não vão de estômago vazio para a escola. Quando está completamente desesperada, como nos últimos dias, ganha coragem e recorre à instituição daqui da vila – oferecem refeições quentes aos mais necessitados. De resto, não conta a ninguém a situação em que vive, nem mesmo aos vizinhos, porque tem vergonha. Se existe pobreza envergonhada, aqui está ela em toda a sua plenitude. Sabe que pode contar com a escola. Os miúdos têm ambos Escalão A, porque o desemprego já se prolonga há mais de um ano (quem quer duas pessoas com 45 anos de idade e habilitações ao nível da 4ª classe?). Dão-lhes o pequeno-almoço na escola e dão-lhes o almoço e o lanche. O pior é à noite e sobretudo ao fim-de-semana. Quantas vezes aquelas duas crianças foram para a cama com meio copo de leite no estômago, misturado com o sal das suas lágrimas…Sem saber o que dizer, segureia-a pela mão e meti-lhe 10 euros no bolso. Começou por recusar, mas aceitou emocionada. Despediu-se a chorar, dizendo que tinha vindo ter comigo apenas por causa da mensagem que eu enviara na caderneta. Onde eu dizia, de forma dura, que «o seu educando não está minimamente concentrado nas aulas e, não raras vezes, deita a cabeça no tampo da mesma como se estivesse a dormir».
Aí, já não respondi. Senti-me culpado. Muito culpado por nunca ter reparado nesta situação dramática. Mas com 8 turmas e quase 200 alunos, como podia ter reparado?
É este o Portugal de sucesso dos nossos governantes. É este o Portugal dos nossos filhos.
Nó cego in Público
Excertos de um artigo de António Barreto
No rescaldo das eleições presidenciais de 1996, detectavam-se facilmente os problemas políticos mais importantes para os quais uma resolução era necessária e um esforço urgente: a justiça e a corrupção. Nestes cinco anos, essas dificuldades agravaram-se. Justiça deficiente e corrupção alimentam-se reciprocamente e combinam à perfeição com um sistema de partidos e de governo que as tornou indispensáveis à sua manutenção. A Administração Pública submeteu-se ainda mais à voracidade partidária. Alguns interesses económicos, os que mais dependem do Estado e os que menos escrúpulos têm, souberam capturar as instituições públicas e a decisão governamental. Certos interesses profissionais e corporativos conseguiram também, por outras vias, fazer o Estado refém e organizar, a seu proveito, os grandes serviços públicos e sociais. Assim, o Estado perdeu a sua liberdade, a sua isenção e a sua capacidade técnica e científica. É o administrador dos interesses de algumas corporações e de alguns grupos económicos. Por esse serviço, o Estado cobra, para os partidos, uma gabela ou um tributo. A corrupção, em Portugal, não é apenas o pagamento ilegal feito para obter vantagens públicas. É um sistema, frequentemente legal, de cruzamento de interesses e favores, de benefícios e vantagens, ao qual ninguém, nos superiores órgãos de poder político, parece querer realmente colocar um travão. Fora dos órgãos de poder político, só a justiça poderia ser, em teoria, um freio e um antídoto a este sistema. Acontece que a justiça se transformou também em parte integrante deste sistema. A sua ineficácia ainda é o menor dos males. Bem pior, na verdade, são os protagonistas e os principais activistas do sistema judiciário (conselhos superiores e sindicatos) que pretendem agora, explicitamente, uma maior fatia dos proventos económicos e do poder político.
Estes dois artigos transportaram-me para um texto de Vinícius de Moraes, musicado por Carlos Lyra e que eu tenho em Vinil , na voz de Zélia Barbosa.
Creio que também foi cantado por Elba ramalho mas não existe no You tube . Consegui apenas um pequenino trecho na voz de cantor desconhecido. Aqui fica juntamente com a letrra
Eu um dia cansado que tava da fome que eu tinha
eu não tinha nada que fome que eu tinha ,
que seca danada no meu Ceará
eu peguei e juntei um restinho de coisas que eu tinha :
duas calças velhas e uma violinha
e num pau de arara toquei para cá.
E de noite eu ficava na praia de Copacabana
zazando na praia de Copacabana
dançando o chachado pras moças olhá
Virgem Santa que a fome era tanta
que nem voz eu tinha
Meu Deus quanta moça que fome que eu tinha
Mais fome que tinha no meu Ceará
Puxa vida que num tinha uma vida
pior do que a minha
que vida danada , que fome que eu tinha
zazando na praia pra lá e pra cá
Quando eu via toda aquela gente no come que come
eu juro que eu tinha saudades da fome
da fome que eu tinha no meu Cearà
e ai eu pegava e cantava e dançava o xaxado
e só conseguia porque no xaxado
a gente só pode mesmo se arrastá.
Virgem Santa que a fome era tanta
qu'inté parecia que mesmo xaxado meu corpo subia
igual se tivesse querido voar.
Vou-me embora pró meu Ceará
porque lá tenho um nome
aqui não sou nada sou só Zé com fome
sou só Pau de Arara nem sei mais cantar
vou picar minha mula
vou antes que tudo rebente
porque estou achando que o tempo está quente
pior do que antes não pode ficar.
E para quem evntualmente não saiba, aqui fica o esclarecimento:
pau de arara:
camião coberto, dotado de varas longitudinais na carroceria, usado para transporte de passageiros , principalmente imigrantes do nordeste brasileiro para o sul do país;
nordestino que emigra geralmente para o Sudeste do Brasil, viajando em paus-de-arara.
Termino com António Aleixo
Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos que pode o povo
qu'rer um mundo novo a sério.
Publicado em 19 de Novembro de 2010 por Arnaldo Antunes
Ontem, uma mãe lavada em lágrimas veio ter comigo à porta da escola. Que não tinha um tostão em casa, ela e o marido estão desempregados e, até ao fim do mês, tem 2 litros de leite e meia dúzia de batatas para dar aos dois filhos. Acontece que o mais velho é meu aluno. Anda no 7.º ano, tem 12 anos mas, pela estrutura física, dir-se-ia que não tem mais de 10. Como é óbvio, fiquei chocado. Ainda lhe disse que não sou o Director de Turma do miúdo e que não podia fazer nada, a não ser alertar quem de direito, mas ela também não queria nada a não ser desabafar. De vez em quando, dão-lhe dois ou três pães na padaria lá da beira, que ela distribui conforme pode para que os miúdos não vão de estômago vazio para a escola. Quando está completamente desesperada, como nos últimos dias, ganha coragem e recorre à instituição daqui da vila – oferecem refeições quentes aos mais necessitados. De resto, não conta a ninguém a situação em que vive, nem mesmo aos vizinhos, porque tem vergonha. Se existe pobreza envergonhada, aqui está ela em toda a sua plenitude. Sabe que pode contar com a escola. Os miúdos têm ambos Escalão A, porque o desemprego já se prolonga há mais de um ano (quem quer duas pessoas com 45 anos de idade e habilitações ao nível da 4ª classe?). Dão-lhes o pequeno-almoço na escola e dão-lhes o almoço e o lanche. O pior é à noite e sobretudo ao fim-de-semana. Quantas vezes aquelas duas crianças foram para a cama com meio copo de leite no estômago, misturado com o sal das suas lágrimas…Sem saber o que dizer, segureia-a pela mão e meti-lhe 10 euros no bolso. Começou por recusar, mas aceitou emocionada. Despediu-se a chorar, dizendo que tinha vindo ter comigo apenas por causa da mensagem que eu enviara na caderneta. Onde eu dizia, de forma dura, que «o seu educando não está minimamente concentrado nas aulas e, não raras vezes, deita a cabeça no tampo da mesma como se estivesse a dormir».
Aí, já não respondi. Senti-me culpado. Muito culpado por nunca ter reparado nesta situação dramática. Mas com 8 turmas e quase 200 alunos, como podia ter reparado?
É este o Portugal de sucesso dos nossos governantes. É este o Portugal dos nossos filhos.
Nó cego in Público
Excertos de um artigo de António Barreto
No rescaldo das eleições presidenciais de 1996, detectavam-se facilmente os problemas políticos mais importantes para os quais uma resolução era necessária e um esforço urgente: a justiça e a corrupção. Nestes cinco anos, essas dificuldades agravaram-se. Justiça deficiente e corrupção alimentam-se reciprocamente e combinam à perfeição com um sistema de partidos e de governo que as tornou indispensáveis à sua manutenção. A Administração Pública submeteu-se ainda mais à voracidade partidária. Alguns interesses económicos, os que mais dependem do Estado e os que menos escrúpulos têm, souberam capturar as instituições públicas e a decisão governamental. Certos interesses profissionais e corporativos conseguiram também, por outras vias, fazer o Estado refém e organizar, a seu proveito, os grandes serviços públicos e sociais. Assim, o Estado perdeu a sua liberdade, a sua isenção e a sua capacidade técnica e científica. É o administrador dos interesses de algumas corporações e de alguns grupos económicos. Por esse serviço, o Estado cobra, para os partidos, uma gabela ou um tributo. A corrupção, em Portugal, não é apenas o pagamento ilegal feito para obter vantagens públicas. É um sistema, frequentemente legal, de cruzamento de interesses e favores, de benefícios e vantagens, ao qual ninguém, nos superiores órgãos de poder político, parece querer realmente colocar um travão. Fora dos órgãos de poder político, só a justiça poderia ser, em teoria, um freio e um antídoto a este sistema. Acontece que a justiça se transformou também em parte integrante deste sistema. A sua ineficácia ainda é o menor dos males. Bem pior, na verdade, são os protagonistas e os principais activistas do sistema judiciário (conselhos superiores e sindicatos) que pretendem agora, explicitamente, uma maior fatia dos proventos económicos e do poder político.
Estes dois artigos transportaram-me para um texto de Vinícius de Moraes, musicado por Carlos Lyra e que eu tenho em Vinil , na voz de Zélia Barbosa.
Creio que também foi cantado por Elba ramalho mas não existe no You tube . Consegui apenas um pequenino trecho na voz de cantor desconhecido. Aqui fica juntamente com a letrra
Eu um dia cansado que tava da fome que eu tinha
eu não tinha nada que fome que eu tinha ,
que seca danada no meu Ceará
eu peguei e juntei um restinho de coisas que eu tinha :
duas calças velhas e uma violinha
e num pau de arara toquei para cá.
E de noite eu ficava na praia de Copacabana
zazando na praia de Copacabana
dançando o chachado pras moças olhá
Virgem Santa que a fome era tanta
que nem voz eu tinha
Meu Deus quanta moça que fome que eu tinha
Mais fome que tinha no meu Ceará
Puxa vida que num tinha uma vida
pior do que a minha
que vida danada , que fome que eu tinha
zazando na praia pra lá e pra cá
Quando eu via toda aquela gente no come que come
eu juro que eu tinha saudades da fome
da fome que eu tinha no meu Cearà
e ai eu pegava e cantava e dançava o xaxado
e só conseguia porque no xaxado
a gente só pode mesmo se arrastá.
Virgem Santa que a fome era tanta
qu'inté parecia que mesmo xaxado meu corpo subia
igual se tivesse querido voar.
Vou-me embora pró meu Ceará
porque lá tenho um nome
aqui não sou nada sou só Zé com fome
sou só Pau de Arara nem sei mais cantar
vou picar minha mula
vou antes que tudo rebente
porque estou achando que o tempo está quente
pior do que antes não pode ficar.
E para quem evntualmente não saiba, aqui fica o esclarecimento:
pau de arara:
camião coberto, dotado de varas longitudinais na carroceria, usado para transporte de passageiros , principalmente imigrantes do nordeste brasileiro para o sul do país;
nordestino que emigra geralmente para o Sudeste do Brasil, viajando em paus-de-arara.
Termino com António Aleixo
Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos que pode o povo
qu'rer um mundo novo a sério.
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Olá Regina o seu post diz muito da situação escolhida por menos de 50% do Povo Português, alguns de boa fé, outros nem sei.
ResponderEliminarEu também tinha o disco, em Vinil, com o Pau de Arara e outras canções muito boas que poderíamos chamar de intervenção. Hoje nem sei onde ele para. A minha vida deu tantas voltas!!!!!!
Mas se o Povo quiser mesmo um mundo novo, como diz o António Aleixo,então esses corruptos todos terão razão para ter medo.
Não merecem perdão.
Um beijo muito amigo, Regina ,desta sua amiga ainda um pouco triste, mas continuando confiante.
Espremos que o povo acorde...
ResponderEliminarUm grande beijinho
Regina
Trabalhei durante seis anos na chamada província em zonas como a Sertã, que era bastante pobre, os pais em geral eram resineiros, tiravam a resina dos pinheiros que ali abundavam. As crianças não tinham refeitorio com almoço, embora lá houvesse aulas de culinária e então comiam das suas cestinhas à hora de almoço. Uma vez estava a chover e vi duas miudinhas debaixo dum chapéu de chuva a almoçar a sua merendinha no jardim. Estavam a comer pão com azeitonas, que era a refeição principal.Nunca mais me esqueci desta cena, vieram-me as lágrimas aos olhos, eu que ia para casa, onde tinha o meu filho coradinho e empregada que me fazia o almoço. Muitos dos alunos andavam 7km por dia para vir para a escola, pelo gelo, chuva, neve, etc. Eram rijos e muito dóceis, mas com dificuldades grandes sobretudo a Inglês. No português e nas cadeiras técnicas, mecânica, serralharia, electricidade, safavm-se bem. A escola era técnica , mas acabou depois do 25/4, o que foi trágico para aqueles adolescentes, que aos 15 anos já conseguiam fazer muitas coisas manuais.
ResponderEliminarNunca vi ninguém passar fome, as famílias eram remediadas, mas havia solidariedade da autarquia e dos professores, que zelavam pelos interesses da Escola. É claro que depois dos 15 anos niguém estudava mais....
Nas cidades, é muito mais sério, pois as pessoas não se conhecem e não se ajudam. As escolas não fazem levatamentos dos jovens com necessidades materiais, só psicológicas, e quantas vezes está tudo ligado. Se as nossas contribuições autárquicas ao menos servissem para alguma coisa, mas só servem para encher os bolsos dos que estão no topo ou para fazer rotundas e repuxos para inglês ver.
N\ao acredito muito que isto vá mudar, está na massa dos povos latinos, a corrupão, o clientelismo, os arranjinhos, as cunhas. Sei que a nível da justiça, há os muito bons, mas já há muitos que só querem receber ao fim do mês e tb metem cunhas para os filhos serem bem sucedidos nos concursos.
Não me parece que outro regime que não a democracia melhorasse as coisas, o que era preciso, era supervisão de pessoas sérias, políticos desinteressados, activos, solidários com a pobreza e interventivos. Mas onde estão eles?