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Silêncio cósmico

Pudera eu regressar ao silêncio infinito,

ao cosmos de onde vim.

No espaço interestelar, vazio, negro, frio,

havia de soltar um grito bem profundo

e assim exorcizar todas as dores do mundo.

Regina Gouveia

NOVO BLOGUE

Retomei o blogue que já não usava há anos.

https://reflexoeseinterferncias.blogspot.com/

Dedico-o essencialmente aos mais novos mas todos serão bem vindos, muito em particular pais, avós, encarregados de educação, educadores ...


sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

E se as histórias para crianças fossem de leitura obrigatória para os adultos ?


Genericamente, quando falamos em Mia Couto associamo-lo a inúmeras obras entre elas Terra Sonâmbula, O último voo do flamingo, Estórias Abensonhadas, Venenos de Deus, Remédio do Diabo, Mar me quer, A chuva pasmada....

Não é tão frequente associarmos o autor a literatura para o público mais jovem. Mas Mia Couto e o exemplo de literatura universalizada para todas as idades

O seu livro O gato e o Escuro faz-nos de imediato pensar no texto de Saramago:
“E se as histórias para crianças fossem de leitura obrigatória para os adultos? Nós, os adultos, seríamos capazes de aprender o que há tanto tempo ensinamos?
A leitura dos contos para crianças teria de ser obrigatória para os adultos. Estes textos são fábulas morais, nas quais são ensinados valores que consideramos indispensáveis, como a solidariedade, o respeito ao próximo e a bondade. Mas depois, nós, os adultos, somos os primeiros a esquecer disso na vida real”.


O gato e o escuro, a reinvenção do escuro, lugar propício à ambientação do medo. A necessária mudança de perspectiva mediante um conflito. A inversão do olhar da temática do medo, tão recorrente e opressora no universo literário infantil.


Vejam, meus filhos, o gatinho preto, sentado no cimo desta história. Pois ele nem sempre foi dessa cor.
Conta a mãe dele que, antes, tinha sido amarelo, às malhas e às pintas. Todos lhe chamavam o Pintalgato.
Diz-se que ficou desta aparência, em totalidade negra, por motivo de um susto. Vou aqui contar como aconteceu essa trespassagem de claro para escuro. O caso, vos digo, não é nada claro.
Aconteceu assim:
o gatinho gostava de passear-se nessa linha onde o dia faz fronteira com a noite. Faz de conta o pôr do Sol fosse um muro. Faz mais de conta ainda os pés felpudos pisassem o poente. A mãe se afligia e pedia:
- Nunca atravesse a luz para o lado de lá.
Essa era a aflição dela, que o seu menino passasse além do pôr de algum Sol. O filho dizia que sim, acenava consentindo.
Mas fingia obediência.
Porque o Pintalgato chegava ao poente e espreitava o lado de lá. Namoriscando o proibido, seus olhos pirilampiscavam.
Certa vez, inspirou coragem e passou uma perna para o lado de lá, onde a noite se enrosca a dormir.
Foi ganhando mais confiança e, de cada vez, se adentrou um bocadinho.
Até que a metade completa dele já passara a fronteira, para além do limite.
Quando regressava de sua desobediência, olhou as patas dianteiras e se assustou.
Estavam pretas, mais que breu.
Escondeu-se num canto, mais enrolado que o pangolim. Não queria ser visto em flagrante escuridão.
Mesmo assim, no dia seguinte, ele insistiu na brincadeira. E passou mesmo todo inteiro para o lado de além da claridade. À medida que avançava seu coração tiquetaqueava. Temia o castigo. Fechou os olhos e andou assim, sobrancelhado, noite adentro. Andou, andou, atravessando a imensa noitidão.
Só quando desaguou na outra margem do tempo ele ousou despersianar os olhos. Olhou o corpo e viu que já nem a si se via. Que aconteceu? Virara cego? Por que razão o mundo se embrulhava num pano preto?
Chorou. Chorou. E chorou.
Pensava que nunca mais regressaria ao seu original formato. Foi então que ouviu uma voz dizendo:
- Não chore, gatinho.
- Quem é?
- Sou eu, o escuro. Eu é que devia chorar porque olho tudo e não vejo nada.
Sim, o escuro, coitado. Que vida a dele, sempre afastado da luz!
Não era de sentir pena? Por exemplo, ele se entristecia de não enxergar os lindos olhos do bichano. Nem os seus mesmo ele distinguia, olhos pretos em corpo negro. Nada, nem a cauda nem o arco tenso das costas. Nada sobrava de sua anterior gateza.
E o escuro, triste, desabou em lágrimas.
Estava-se naquele desfile de queixas quando se aproximou uma grande gata. Era mãe do gato desobediente. O gatinho Pintalgato se arredou, receoso que a mãe lhe trouxesse um castigo. Mas a mãe estava ocupada em consolar o escuro. E lhe disse:
- Pois eu dou licença a teus olhos: fiquem verdes, tão verdes que amarelos.
E os olhos do escuro de amarelaram. E se viram escorrer, enxofrinhas, duas lagriminhas amarelas em fundo preto. O escuro ainda chorava:
- Sou feio. Não há quem goste de mim.
- Mentira, você é lindo. Tanto como os outros.
- Então porque não figuro nem no arco-íris?
- Você figura no meu arco-íris.
- Os meninos têm medo de mim. Todos têm medo do escuro.
- Os meninos não sabem que o escuro só existe é dentro de nós.
- Não entendo, Dona Gata.
- Dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro só mora quem lá inventamos. Agora me entende?
- Não estou claro, Dona Gata.
- Não é você que mete medo. Somos nós que enchemos o escuro com nosso medos.
A mãe gata sorriu bondades, ronronou ternuras, esfregou carinho no corpo do escuro. E foram carícias que ela lhe dedicou, muitas e tantas que o escuro adormeceu. Quando despertou viu que as suas costas estavam das cores todas da luz. Metade do seu corpo brilhava, arco-iriscando. Afinal? O espanto ainda o abraçava quando escutou a voz da gata grande:
- Você quer ser meu filho?
O escuro se encolheu, ataratonto. Filho? Mas ele nem chegava a ser coisa alguma, nem sequer antecoisa.
- Como posso ser seu filho se eu nem sou gato?
- E quem lhe disse que não é?
E o escuro sacudiu o corpo e sentiu a cauda, serpenteando o espaço. Esticou a perna e viu brilhar as unhas, disparadas como repentinas lâminas. O Pintalgato até se arrepiou, vendo um irmão tão recente.
- Mas, mãe: sou irmão disso aí?
- Duvida, Pintalgatito? Pois vou-lhe provar que sou mãe dos dois. Olhe bem para os meus olhos e verá.
Pintalgato fitou o fundo dos olhos da sua mãe, como se se debruçasse num poço escuro. De rompante, quase se derrubou, lhe surgiu como que um relâmpago atravessando a noite.
Pintalgato acordou, todo estremolhado, e viu que, afinal, tudo tinha sido um sonho. Chamou pela mãe. Ela se aproximou e ele notou seus olhos, viu uma estranheza nunca antes reparada. Quando olhava o escuro, a mãe ficava com os olhos pretos. Pareciam encheram de escuro. Como se engravidassem de breu, a abarrotar de pupilas.
Ante a luz, porém, seus olhos todos se amarelavam, claros e luminosos, salvo uma estreitinha fenda preta.
Então, o gatinho Pintalgato espreitou nessa fenda escura como se vislumbrasse o abismo. Por detrás dessa fenda o que é que ele viu? Adivinham? Pois ele viu um gato preto, enroscado do outro lado do mundo.

O autor de o Gato e o Escuro é também o autor deste outro texto sobre o medo


(…)Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente… Citarei Eduardo Galeano acerca disso que é o medo global:


“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não têm medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.”E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.


A terminar, o poema "Mortos justificados"

Demoliram o país de Ahmed.



Erro de construção, justificaram.


Os pilares acentavam numa fé errada.


Debaixo do tecto se abrigavam famílias,


velhos, meninas, mulheres.


Todos tinham o mesmo nome,


o nome daqueles que não têm nome.


O país ruiu, ante bombas e tanques,


prova de que não estava bem dimensionado.

Os pombos escaparam, os pobres não.


Que culpa têm os demolidores


de haver tanta gente viva?


Dos que sobraram não se escutam lamentos.


Os moradores choram numa língua errada.


Entre os escombros, um braço de menina


ousa a culpa: de que valia ser criança


se não dava uso à infância?


Erro de cálculo na engenharia,


falta de sustentabilidade ambiental,


inviabilidade financeira:


o auditor da comunidade internacional,


encerrou o file no laptop,


e suspirou, aliviado: felizmente,


a maior parte dos países

nunca chegou a existir

Mia Couto in idades cidades divindades



2 comentários:

  1. Olá Regina
    Obrigada pelos lindos texos que apresentou.
    Um beijo.

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  2. Como o Petiti Prince, penso que estes textos são mesmo para adultos e fascinantes. Como são muitos do contos infantis, que as crianças não percebem.....

    Gosto muito de Mia Couto.

    Bjo e bom fds.

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