Acabei de reler a História
do Cerco de Lisboa, de Saramago. Como creio já ter referido mais que uma
vez, Saramago é um dos meus autores preferidos. Tenho quase todas as suas obras
e de vez em quando apetece-me reler algumas. Acho que já reli todas as que
tenho, algumas mais que uma vez.
O mesmo me acontece com muitos outros autores. Mia Couto é
um deles e comecei agora a reler O outro pé da Sereia.
Continuando a falar de livros, há já vários anos que tenho para
publicar um livro de contos, de extensão variável (desde 2 a 60 páginas). A Câmara Municipal de Alfândega
da Fé, que ficou de o editar, tem vindo a adiar face às dificuldades económicas
com que se depara. Este ano resolvi mandar editar na
Várzea da Rainha, a conselho do meu professor de pintura,
Domingos Loureiro, que ali manda fazer os catálogos, meia dúzia de exemplares, só
para a família. Qualquer pessoa pode fazer
aqui uma
simulação on-line e ficar a saber por quanto fica a edição. Esta “editora” tem a vantagem manter
o custo por exemplar, independentemente do número de exemplares pretendidos
Resolvi fazer a surpresa à família e o livro foi uma das
prendas de Natal.
A capa é da autoria do meu filho Nuno tendo por base uma tela minha.
Como não sabia o tempo que demoraria o processo, tratei de
tudo em Outubro, mas recebi os livros dois dias após fazer a transferência bancária.
Escondi-os tão bem que corri o risco de
não os poder usar como presentes pois tive dificuldade em encontrá-los Um dos
contos, Vou-me embora para Pasárgada,
que foi classificado em 2º lugar na 7ª edição do Concurso Dr. João Isabel,
promovido pela Câmara de Manteigas, já
está on-line há bastante tempo (podem lê-lo "clicando" no título, no lado direito do meu blogue).
Há mais cinco contos também classificados em concursos.
Anexo um deles, que é o mais pequeno de todos. Qualquer dia coloco mais alguns
on-line.
(…)Almas que
atravessais o lodo da existência,
Este lodo
perverso, iníquo, envenenado,
Levando sobre
a fronte o esplendor da inocência,
Calcando sob
os pés o dragão do pecado(…)
Guerra Junqueiro em “Aos simples”
"Darbón, o médico de Platero, é grande
como o boi malhado, vermelho como uma melancia....Já não tem um só dente e
quase não come senão miolo de pão, que primeiro amassa entre os dedos. Faz uma bola
e leva-a à boca. Aí a conserva revolvendo-a uma hora...Mas enternece-se como
uma criança, com Platero."
Esta descrição que Juan Rámon de
Giménez, no seu livro “Platero e eu” faz do veterinário Darbón, lembra-me
sempre o Mudo.
Na aldeia onde
nasci e onde vivi em criança, havia dois mudos. A um nunca conheci o nome
próprio e não sei se alguém o sabia ao
certo. Toda a gente se referia a ele como o Mudo. Era grande, vermelho e
desdentado. Tal como Dárbon, mascava continuamente miolo de pão amassado. Como não
falava, emitia sons mais ou menos extensos "Ah",
"Aaaaaaaaaah", que acompanhava com gestos exuberantes. Para além
disso o seu rosto adquiria as mais diversas expressões desde a ternura à ira,
pelo que não era difícil entender o que lhe ia na alma. Era um homem puro e
bom. E tal como Darbón se enternecia com Platero, o Mudo enternecia-se com
qualquer criança a quem tentava mostrar, por gestos e sons, o seu afecto. Mas
as crianças, especialmente as mais pequenas, assustavam-se com a exuberância do
mudo e fugiam dele, muitas vezes chorando. A tristeza ficava então estampada no
seu rosto. Por mais que uma vez, em tais situações, vi os seus olhos marejados
de lágrimas. Eu, habituada que estava desde muito pequenina, à sua presença
frequente lá por casa, gostava muito dele. E o sentimento era mútuo. Quando me
via emitia sons de satisfação e batia com a mão no peito. Queria deste modo
significar a afeição que tinha por mim.
Este era um
dos mudos que havia na aldeia onde nasci. O outro era o ti Briato. O seu nome
era Viriato mas provavelmente nem o próprio o sabia. O ti Briato era um velho
de barbas grisalhas e olhos da mesma cor.
Ao que parece,
não era mudo, mas agia como tal. A tudo o que lhe perguntassem respondia por
gestos, encolhendo os ombros ou acenando a cabeça, afirmativa ou negativamente,
conforme o caso. Mas ao contrário do Mudo, o seu rosto tinha sempre a mesma
expressão vazia. Nunca o vi sorrir, tal como nunca consegui detectar nos seus
olhos qualquer brilho. O seu rosto lembrava o de uma estátua e, tal como uma
estátua, era incapaz de fazer mal a alguém.
Um dia o meu
pai contou-me o que sempre ouvira contar ao meu avô. Em jovem o nome condizia
com a pessoa pois o ti Briato era corajoso e valente como o herói dos Montes
Hermínios. Para além disso era um rapaz bonito, alegre e muito ágil; montava um
cavalo em pelo como ninguém. Era criado numa das casas ricas da aldeia e
apaixonou-se pela filha do patrão. Quando este se apercebeu, despediu - o. A
partir daí o Briato começou a ficar cada dia mais triste, mais metido consigo.
Corria o ano de 1918. Por essa altura, a Europa foi assolada por uma epidemia
terrível - a pneumónica. Julieta, a
filha do patrão, morreu vítima da doença. O meu pai dizia que foi a partir desse
dia que o Briato deixou de falar e se foi transformando, aos poucos, no ti
Briato que eu conheci. Nunca ninguém soube se a sua afasia era fisiológica ou
se se tratava simplesmente de uma recusa em falar, motivada por uma imensa
tristeza com origem numa profunda paixão.
Na vida destes
dois homens havia muita coisa em comum: provavelmente uma enorme sensibilidade,
a mudez, voluntária ou involuntária, a
bondade, uma vida de pobreza e solidão e um casebre idêntico por
habitação. Talvez por isso a morte tenha decidido que partilhassem de um mesmo fim.
Foi no ano da neve buraqueira. Ambos morreram enregelados, cobertos de neve
quando esta, tocada a vento, entrou pelas suas casas mal protegidas. Lembro-me
ainda das palavras do padre, quando do funeral:
Estes dois homens a quem ninguém alguma vez
conheceu malícia, estão por certo no Reino de Deus.
E se o Reino de Deus existir e for tal como o fantasiam, ambos estarão
felizes. O Mudo rodeado de anjos que, por certo, não se assustam com os seus
sons e gestos um pouco grotescos, e o ti Briato sem entraves ao amor pela sua
Julieta.
Já não me surpreende, Regina. Mas eu também não me canso de repetir quanto a admiro. A história que conta tem um fundo de tanta sensibilidade e apelo a um mundo mais justo, que correspondem bem à sua personalidade tão rica.
ResponderEliminarUm grande abraço, Regina.
Obrigada,mais uma vez, pelas suas palavras.
EliminarUm grande beijinho
Regina