A noticia num arrastamento vão:
“A seguir
Un Soir à Lima“…
Pára-me o coração…
Essa querida e maldicta melodia
Rompe do apparelho inconsciente…
Numa memoria subita e presente
Minha alma se extravia…
O grande luar da Africa fazia
A encosta arborizada reluzente.
Posta onde, até ao mar, tudo se dava
À clara escuridão do luar ingente…
Mas só eu, à janella.
Minha mãe estava ao piano
E tocava…
Exactamente
“Un Soir à Lima”.
Que é do seu alto porte?
Da sua voz continuamente acolhedora?
Do seu sorriso carinhoso e forte?
O que hoje ha
Que m’o recorda é isto que oiço agora
Un Soir à Lima.
A nossa, a sua melodia
O mesmo “Un Soir à Lima”.
Sob a luz
E eu que nunca pensei que ella morresse
E me deixasse entregue a quem eu sou!
Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.
Ninguem é homem para a sua mãe!
Á memoria que tenho
O recorte perfeito de medalha
D’aquelle perfeitissimo perfil.
Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha,
Meu coração sempre infantil.
Por luzes, musica e a visão
Que não tem fim
D’essa hora eterna no meu coração,
Em que voltavas
A folha irreal da musica a tocar
E eu te ouvia e via
Continuar
A eterna melodia
Que está
No fundo eterno d’esta nostalgia
De quando, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.
Não ter aqui numa algibeira,
Fechada, haurida, completa,
Essa scena inteira!
Não poder arrancar
Do espaço, do tempo, da vida
E isolar
Num logar
Da alma onde ficasse possuida
Eternamente
Viva, quente,
Essa sala, essa hora,
Toda a familia e a paz e a musica que ha
Mas real como alli está
Ainda, agora,
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima.
Tam bem dobrado
Na sua educação
E hoje sou o trapo que o Destino
Fez enrolado e atirado
Para um canto do chão.
Deixa me estar
Nesta visão
Do lar de então
Deixa-me ouvir, ouvir, ouvir —
Eu à janella
Do nunca mais deixar de sentir,
Nessa sala, a nossa sala, quente
Da Africa ampla onde o luar está
Lá fóra vasto e indifferente
Nem mal nem bem
E onde, no meu coração
Mãe, mãe
Tocas visivelmente,
Tocas eternamente
Un Soir à Lima.
Nesta felicidade
Em que existia uma alma
(Meu Deus, que saudade!),
Que, sob a luz que dourava,
(Hoje onde é que isso está?)
Longe de onde o luar prateava,
Minha mãe tocava
Medalha attenta e humana ao piano,
Un Soir à Lima.
Ás 21h teve lugar a apresentação do livro RITUAL SEM PALCO, de Manuela Nogueira
-
Não
sou nada.
- Álvaro de Campos, 1928
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
(….)
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
(...)
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
A lucidez de Manuela Nogueira, a capacidade de contar, o impressionante e impressionado detalhe com que fala da sua infância, é um meio de transporte.
Pousamos em cada palavra a caminho dos anos de 1930. Eu sei que os livros são gente e eles operam exactamente assim. Mas gente ser um livro é mais raro, especialmente se a história que nos conta vem de um tempo, ou de uma realidade, que julgávamos esgotada de discurso directo. Subitamente, alguém está verdadeiramente dentro de um segredo. Uma coisa de conhecer e sentir. in Público, 19/07/2015
Constou de uma seleção de textos de Fernando Pessoa ( e seus heterónimos ) suportados por um ambiente sonoro/cénico que acompanhou as diversas leituras
Apreciei a primeira parte do teu post dedicado à memória da Mãe. Depois desliguei. Penso sempre que deverias parar. Mas cada um lê o que quer. O poema é demasiado comovente para se conseguir absorver mais informação.
ResponderEliminarBom Domingo
Quis relatar tudo o que se passou na sessão, que foi belíssima, para minha memória futura.
ResponderEliminarO poema é extraordinário. Nâo sei se leste apenas os excertos ou todo no site sugerido. Vale a pena lê-lo todo.
Boa semana
Ab
Regina
Li todo o poema no blogue que citaste. Que poema, meu Deus.
EliminarFez-me recordar as tardes em que a minha Mãe se sentava ao piano e tocava o Arabesque de Debussy, que o meu filho João agora toca. Vêm-me sempre as lágrimas aos olhos ao ouvi-lo e este teu post tocou-me muito fundo, adoro os poemas dele, fazem-nos pensar na vida e no envelhecimento, que ele não viveu.
Obrigada.
O que teriam produzido génios como Pessoa, Souza-Cardoso, Schubert, Chopin, Mozart, .... se não tivessem partido tão cedo?
ResponderEliminarAb
Regina
Felizmente Bach e Beethoven viveram mais tempo...
EliminarJá li todo o teu post e gostei muito. Não sei como aguentas tanata actividade, ao fim duma hora já não consigo estar no meio de muita gente, a não ser em concertos e no cinema.
Bjo
A tua atividade também é muita mas de outro género. Continuas a pintar bastante (eu agora pinto pouco) e fazes fotografias belíssimas...
ResponderEliminarAb
Regina
Publicação memorável!
ResponderEliminarCadinho RoCo
Obrigada e seja bem vindo(a)
ResponderEliminarRegina