Depois de um mês de férias no Douro eu chegava a casa dos meus pais, no Porto, com os deveres por fazer, má pronúncia, feridas no corpo, porque me alimentava de batatas fritas e ovos estrelados. Sempre detestei que chamassem por mim para ir para a mesa!
segunda-feira, 19 de maio de 2014
Uma tarde diferente
Como anunciei na última mensagem,
ontem fui à Casa Museu Marta Ortigão Sampaio
Já anteriormente tinha visitado o
Museu mas deste vez fui essencialmente pelo programa do evento que a Vivacidade
promoveu para celebrar o Dia dos Museus.
O evento teve início na sala ultimamente
destinada a Biblioteca. Adelaide Pereira começou por apresentar a mesa, onde a
ladeavam Mónica Baldaque e Pedro Freire de Almeida que fez uma intervenção muito
interessante subordinada ao tema Casa-museu.Cultura
urbana.
Seguiu-se uma intervenção do Grupo de
Teatro Ilha Mágica com leituras de poemas de Sebastião da Gama, Mário Cesariny,
Adília Lopes e Agustina Bessa Luís. Foi também lido o texto “Dias contados “de
Mónica Baldaque (filha de Agustina).
Dias contados
Nasci na província, à meia-noite de um domingo de 12 para 13 de maio.
Descia a procissão das velas pela quinta dos meus avós, e a lua em
quarto-crescente brilhava no céu azul-limpo.
Nasci num dos quartos do mirante, sobre o
magnífico vale da Régua. Magnífico, quando tudo eram quintas e caminhos
estreitos entre muros e oliveiras; e as vidas eram secretas; e o canto
compassado dos cavadores me inquietava, como se preparassem um ritual de morte.
Não era uma vila, nem uma aldeia, mas um lugar:
lugar de Godim, antiquíssimo, referido em pergaminhos do tempo de Egas Moniz.
Aquela casa fora dos meus bisavós, e passara para minha avó e a sua
irmã, espanholas de Zamora.
Quando eu nasci, alguém me tirou o coração e o
escondeu na casa. Por isso ele nunca deixou de bater lá, e continua, para
sempre.
A família do Douro era uma gente estranha. Liam muito,
escreviam bem, tinham uma tendência para o teatro, e um temperamento feroz; para
eles, nada era verdadeiramente importante, nem viver nem morrer, nem ser isto
ou aquilo, e geriam com desprendimento as fortunas que vinham e iam.
Eles representavam o mundo fantástico para uma criança.
Eu era feliz, porque não me exigiam mais do que aquilo que era natural eu dar,
o que significava que vivia ali num estado de liberdade e de confiança nos
adultos.
Nas tardes de muito calor, eu lia na sala às escuras as histórias as histórias da Elena Fortún, em espanhol: os dias de Célia e as suas primitas que viviam em Madrid e passavam férias em Santander. Representavam já uma época um pouco antiquada, mas não deixava de me tocar pelas ligações familiares que se esboçavam, divertidas, complexas, agitadas.
Depois de um mês de férias no Douro eu chegava a casa dos meus pais, no Porto, com os deveres por fazer, má pronúncia, feridas no corpo, porque me alimentava de batatas fritas e ovos estrelados. Sempre detestei que chamassem por mim para ir para a mesa!
Depois de um mês de férias no Douro eu chegava a casa dos meus pais, no Porto, com os deveres por fazer, má pronúncia, feridas no corpo, porque me alimentava de batatas fritas e ovos estrelados. Sempre detestei que chamassem por mim para ir para a mesa!
Com os meus pais, as regras mudavam: era a escola, o estudo, as obrigações
de cumprir, de me formar no conhecimento da vida e das pessoas. Exigiam que eu
estivesse atenta e soubesse exprimir-me.
Chorava, quando vinha do Douro, mas enfrentava com coragem e determinação
este outro desafio a vencer.
Mas o tempo da primeira infância,
passei-o em Coimbra. Meu pai concluía Direito, minha mãe escrevia e tratava de
mim e da casa. Vivíamos numa pequena casa dentro de um jardim, próxima da dos
meus avós paternos. Meu avô era militar, e todos os dias o impedido lhe trazia
o cavalo a casa, para ele seguir para o quartel. Levava-me a passear a pé até à
Quinta das Lágrimas ou ao Portugal dos Pequeninos, o que significava andar 5
quilómetros por dia! Muito pequena, já olhava as plantas com imensa delicadeza
e ternura. Chegava a casa sempre com um raminho de alecrim.
Mudámos entretanto para o Porto.
Gostei de fazer a primária na escola pública de Cedofeita.
Lembro-me de todas as amigas que lá
tive, da rua que percorria, das lojas, do recreio da escola com duas enormes
tílias que o ensombravam. E de escrever no caderno - 1952.
Depois o Liceu Michaelis, a que
não consegui adaptar-me. Não gostava do edifício, nem dos corredores, nem dos
recreios. Tudo aquilo era inóspito e hospitalar. O meu rendimento era mau.
Mudaram-me para o Colégio da Paz, das
freiras Doroteias.
Sempre me enfastiaram as aulas.
Bom, era o tempo de férias no Douro! Lá, se moldou a minha alma provinciana e
resistente.
Nunca tive medo de nada. Nem do
escuro, nem dos mortos, nem dos fantasmas, nem dos ladrões. Ficava sempre do
lado dos personagens mais temíveis, não para os catequizar e trazer para o lado
da luz e do bem, mas pelo prazer de os desmontar.
A gente do Paço, de Vila Meã, da
parte do meu avó materno, era uma gente valente e aventureira. E a aventura não
implica forçosamente partir para o Brasil, ou outros lugares distantes. Pode
ser-se aventureiro no espaço limitado do vale onde se nasceu, viveu e morreu,
sem de lá ter saído.
No fim do verão, fazia a viagem de comboio, com a minha avó, da Régua
até Vila Meã. Ia receber rendas, acertar contas, ouvir queixas, despedir uns,
admitir outros.
A minha tia Amélia (a Sibila),
recebia-me à porta da cozinha, sem um sorriso nem um beijo. Punha-me um avental
comprido, e um grosso cordão de ouro ao pescoço. "Aqui todos
trabalham" - dizia-me.
Eu aceitava aquela extravagância
e procurava não me sair mal. Trocava o babeiro de fustão e bordado inglês
branco que usava no Douro pelo avental de chita...Aprendi a fiar linho e a dar
de comer aos porcos, e ouvia em silêncio as conversas cheias de conflitos, dos
adultos, à luz da candeia de azeite.
Só muito mais tarde percebi o
sentido do avental e do cordão de ouro. Era como quem me dizia: - tu és aqui
rainha, podes usar o ouro, mas trabalhas com os outros todos.
Pouco convivi com essas tias,
irmãs do meu avó materno, mas esse ensinamento ficou-me para toda a vida. E a
suspeita, ainda, de que elas consideravam o amor coisa de velhos e ociosos!
Com meu avô, já convivi mais. Não
confiava nele. Vivia ao contrário de todos nós, e transtornava a vida da casa.
Almoçava às três da tarde, saía às cinco, e só voltava de madrugada. O avô jogava e fazia negócios. No jogo ganhava, nos negócios perdia. Lia romances de
capa - e - espada que lhe mandavam em caixotes, da livraria.
Já muito doente, pediu que lhe
pendurassem no quarto, em frente à cama, o relógio da sala de jantar. Queria
saber a que horas ia morrer, o que nos pareceu bem.
1962 - o grande ano de todas as
mudanças.
Fomos viver para Esposende. Uma casa isolada num pinhal, numa terra de
pescadores, deserta no inverno. A mãe fazia uma vida retirada, e eu não podia
ser mais feliz naquela terra sem perigos, onde passeava sozinha com o cão, à
beira-mar, na praia deserta.
Minha mãe dava-me para ler,
Dickens, e mandava-me ir ver os filmes do Bergman. Meu pai desenhava, e
ensinava-me a desenhar.
Aí, comecei a escrever. A
escrever cartas intermináveis, que eram como diários de bordo.
Ainda estive um ano interna no
colégio das Doroteias, na Póvoa, onde andara minha mãe. Mas tendo seguido a
área de Letras, que no colégio não havia, fiquei dois anos em casa a estudar
com um professor particular que lá ia todos os dias dar-me aulas. Um privilégio
fantástico! Era dona do meu tempo.
Entrei em História na Faculdade
de Letras do Porto. Fiz uma única cadeira - Paleografia. A mais interessante,
porque me obrigava a decifrar, e não a decorar. Mudei para Belas-Artes.
Frequentei dois anos a Escola do Porto, e, zangada, pedi a transferência para
Lisboa. Fui viver para casa de uma
senhora judia alemã, mesmo nas traseiras da sinagoga. Ela fazia-me seguir a sua
alimentação Kasher, e contava-me episódios terríveis da guerra, com um
sentimento de uma dor apagada e adormecida.
Não gostei de Lisboa. Demasiada
luz, demasiada gente, demasiadas ruas perpendiculares, demasiado rio, demasiado
pouco do que eu realmente precisava a para seguir o meu destino. Precisava do
nevoeiro a entrar-me pela casa dentro, dos negros e azuis da paisagem, da
pronúncia de corte castelhana, da linha do Douro, e de tudo o que eu já tinha
aprendido e não podia esquecer. É
importante que cada um conheça bem os limites do seu mundo, para que ele
possa crescer como deve, de dentro para fora, e nunca de fora para dentro,
inchando-nos.
Os meus pais compraram a casa do
Gólgota, sobre o rio, e aí se fixaram. Foi uma casa de ingleses, que mantém a
mesma traça e a mesma atmosfera. Já pouco lá vivi, porque casei entretanto. Mas
sinto ser essa, hoje, a casa de família.
Semeou sécias no jardim, e morreu
lá, minha avó materna; e as coisas todas foram tomando conta do seu lugar.
A casa do Douro foi vendida, e eu
dormi lá na última noite com as minhas filhas. Demos uma volta aos quintais
antes de entregarmos a chave, e tive uma pena imensa das galinhas que ficavam
no galinheiro.
Ah! Fiz uma carreira nos
museus, de que já me esqueci. Não por
mágoas, mas porque isso foi a minha vida paralela que ficou para trás, esbatida.
Foi uma tarefa que cumpri, mas não um destino. Esse, é só meu, não partilhável,
e será o que eu deixo em testamento aos meus três filhos
Seguidamente Mónica Baldaque, como introdução à exposição que iria ser visitada
posteriormente, fez uma referência aos três quadros patentes na mesma e que
pintou para este museu, onde foi diretora, e para este evento. Os três quadros
foram “inspirados” numa obra de Aurélia de Sousa tia de Marta Ortigão Sampaio
Seguiu-se um momento musical muito eclético, com José António (voz e viola) e Regina Raposo
(violino).
Uma das obras apresentadas, há muito que a não ouvia: trata-se de uma
canção de embalar, do cancioneiro popular e que a minha mãe cantava com a sua
belíssima voz de soprano
As outras obras foram:
Cantiga para quem sonha de Luís Goes
Cantarei de Pedro Barroso
Silêncio e tanta gente de Maria Guinot
Amigos para sempre aqui na voz de Carreras e Sara Brightman
Finalmente o grupo de teatro fez uma representação humorística com base em
Romeu e Julieta a que, sinceramente, não achei grande graça.
Tudo o resto valeu a pena, nomeadamente a visita, com a presença da artista, à exposição de jóias de Ana
Fernandes, jóias modernas, sempre
lindíssimas. Só tenho uma, mas na generalidade acho-as belíssimas.
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Gosteii menso deste texto, embora tenha uma parte repetida, deve ter sido do corta e cose!!
ResponderEliminarTencionava ir ao evento, mas depois resolvemos ir todos à Ribeira almoçar em família e demos um passeio enorme; confesso que perdi a vontade de socializar!!
Não aprecio muito as joias, é uma das coisas que não me atrai, não sei porquê.
Gostava de ter ouvido o Pedro, os poemas e a música. O teatro só quando é bom.
De qualquer forma, a Adelaide está de parabéns!! O Vivacidade está a extravazar do seu espaço.....
bjo
Obrigada Virgínia. Já eliminei as duplicações do texto.Também não sou grande apreciadora de jóias clássicas; já não digo o mesmo das jóias Lalique e de algumas contemporâneas, que revelam grande criatividade.
ResponderEliminarAb
Regina.
Olá Regina
ResponderEliminarGostei muito da sua "reportagem" sobre a visita à Casa Museu Marta Ortigão.
Também gostei da intervenção da Mónica Baldaque que nos leva até à inspiração da Mãe, Agustina, em relação aos livros que escreveu, em especial A SIBILA e VALE ABRAÃO. A SIBILA foi mesmo o livro dela , dos poucos que li, de que mais gostei. A Adelaide organizou uma bonita comemoração do Dia dos Museus. Tive pena de não ir, mas também passei um dia bom com todos os meus filhos.
Um beijo, Regina.
Acho que passar o dia com todos os filhos foi, sem dúvida, uma opção melhor do que ter ido ao evento por muito bom que ele tenha sido.
ResponderEliminarUm grande abraço
Regina