domingo, 21 de março de 2010
Março o mês dos Dias...
Hoje, dia 21, comemora-se o Dia da Poesia e também o da Árvore
Não sou muito apologista destes dias dedicados a algo. Considero que todos os dias deviam ser dias de poesia, do pai, da mãe , da criança, da mulher, da árvore . Mas dado que tais dias existem decidi entrar na onda…
A propósito do Dia da Poesia coloco dois poemas entre muitos que poderia ter seleccionado e o mesmo acontece quanto ao Dia da Árvore para o qual seleccionei três poemas.
Todo o tempo é de poesia
Todo o tempo é de poesia
Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia
Todo o tempo é de poesia
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas qu'a amar se consagram.
Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação ao caos
à confusão da harmonia.
António Gedeão
Exploração
Qual exploradora, parti um dia.
Embrenhei-me na selva da vida
onde sabia andar escondida
a poesia
Encontrei-a
na luz ténue do sol ao fim do dia,
na molécula, no átomo, no quantum de energia,
nas leis de Newton, no conceito de entropia.
Encontrei-a
na reflexão da luz, na impulsão no ar,
no cheiro a maresia e nas algas do mar,
no orvalho, na geada, na chuva, no luar.
Encontrei-a
no ínfimo e no imenso que a vista não alcança,
nas rugas dum idoso, no rir de uma criança,
numa tela, num concerto, numa dança.
Encontrei-a
no voo da gaivota, na pétala da flor,
na chama que tremula e se multiplica em cor
e que irradia energia na forma de calor
Encontrei-a
nas estrelas, nas galáxias mais distantes,
no olhar apaixonado daqueles dois amantes,
nos extintos dinossauros de dimensões gigantes.
Encontrei-a
em medusas, corais, nos fundos oceanos,
no vento a agitar nas árvores os ramos,
em pinturas rupestres com vários milhares de anos
Encontrei-a
na violeta escondida no canto do jardim
e no frasco que continha essência de jasmim.
Tentei então guardá-la só para mim.
Foi assim que ela se evolou
e de novo eu aqui estou
a procurá-la.
Regina Gouveia
As folhas secas dos plátanos
As folhas dos plátanos
desprendem-se e lançam-se na aventura do espaço,
e os olhos de uma pobre criatura
comovidos as seguem.
São belas as folhas dos plátanos
quando caem, nas tardes de Novembro
contra o fundo de um céu desgrenhado e sangrento.
Ondulam como os braços da preguiça
no indolente bocejo.
Sobem e descem, baloiçam-se e repousam,
traçam erres e esses, ciclóides e volutas,
no espaço escrevem com o pecíolo breve,
numa caligrafia requintada, o nome que se pensa,
e seguem e regressam,
dedilhando em compassos sonolentos
a música outonal do entardecer.
São belas as folhas dos plátanos espalhadas no chão.
Eram lisas e verdes no apogeu
da sua juventude em clorofila,
mas agora, no outono de si mesmas,
o velho citoplasma, queimado e exausto pela luz do Sol,
deixou-se trespassar por afiados ácidos.
A verde clorofila, perdido o seu magnésio,
vestiu-se de burel,
de um tom que não é cor,
nem se sabe dizer que nome tenha,
a não ser o seu próprio,
folha seca de plátano.
A secura do Sol causticou-a de rugas,
um castanho mais denso acentuou-lhe os nervos,
e esta real e pobre criatura
vendo o solo coberto de folhas outonais
medita no malogro das coisas que a rodeiam:
dá-lhes o tom a ausência de magnésio;
os olhos, a beleza.
António Gedeão
A uma cerejeira em flor
Acordar, ser na manhã de Abril
a brancura desta cerejeira;
arder das folhas à raiz,
dar versos ou florir desta maneira.
Abrir os braços, acolher nos ramos
o vento, a luz, ou o quer que seja;
sentir o tempo, fibra a fibra,
a tecer o coração de uma cereja.
Eugénio de Andrade
Prodígio
Prodigiosa aquela cerejeira com seus frutos.
Sensual, rubro o epicarpo, carnudo, nacarado o mesocarpo
da pudica semente protecção.
Tal como se fora a vez primeira, saboreio uma cereja calmamente num misto de volúpia e devoção.
Regina Gouveia
A propósito do Dia do Pai , no pssado dia 19, coloco o texto morreste-me de José Luís Peixoto, para mim um dos textos mais belos que o autor escreveu, e um poema meu relativamente recente
Morreste-me
Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se
continuasse. Diante de mim, as ruas varridas, o sol enegrecido de luz a limpar asse
continuasse. Diante de mim, as ruas varridas, o sol enegrecido de luz a limpar as
casas, a branquear a cal; e o tempo entristecido, o tempo parado, o tempo
entristecido e muito mais triste do que quando os teus olhos, claros de névoa e
maresia distante fresca, engoliam esta luz agora cruel, quando os teus olhos
falavam alto e o mundo não queria ser mais que existir. E, no entanto, tudo como
se continuasse. O silêncio fluvial, a vida cruel por ser vida. Como no hospital.
Dizia nunca esquecerei, e hoje lembro-me. Rostos tornados desconhecidos,
desfigurados na minha certeza de perder-te, no meu desespero desespero. Como
no hospital. Não acredito que possas ter esquecido. Enquanto esperava pela
minha mãe e pela minha irmã, as pessoas passavam por mim como se a dor que
me enchia não fosse oceânica e não as abarcasse também. As mulheres falavam,
os homens fumavam cigarros. Como eu, esperavam; não a morte, que nós, seres
incautos, fechamos-lhe sempre os olhos na esperança pálida de que, se não a
virmos, ela não nos verá. Esperavam. Num carro demasiado rápido, a minha
mãe, curvada de perder o que possuía, e a minha irmã. Os homens e as mulheres
falavam e fumavam ainda quando subimos. No quarto, numa cama qualquer que
não a tua, o teu corpo, pai. Talvez distante, preso num olhar entreaberto e
amarelado, respiravas ofegante. O ar com que lutavas, lutavas sempre, gritava o
seu caminho rouco. Pelo nariz, entrava o tubo que te sustinha. Aos pés da cama,
a minha mãe calada, viúva de tudo. À cabeceira, a minha irmã, eu. Cortinas de
plástico, biombos de banheira separavam-nos das outras camas. Pousei-te as
mãos nos ombros fracos. Toda a força te esmorecera nos braços, na pele ainda
pele viva. E menti-te. Disse aquilo em que não acreditava. Ao olhar amarelo,
ofegante, disse que tudo serias e seríamos de novo. E menti-te. Disse vamos
voltar para casa, pai; vamos que eu guio a carrinha, pai; só enquanto não puder,
pai; vá, agora está fraco mas depois, pai, depois, pai. Menti-te. E tu, sincero, a
dizeres apenas um olhar suplicante, um olhar para eu nunca mais esquecer. Pai.
À hora, mandaram-nos sair. Quando saímos, agarrados como naúfragos, a luz
abundante bebia-nos. (…)
José Luís Peixoto
Recordações da infância
Muros de xisto,
tal como outrora cobertos de silvas,
ostentando amoras.
Caminhos.
Este já foi ribeiro, o ribeiro dos linhos.
Já não existe ribeiro, tão pouco o linho.
O pó esvoaça lento
por sobre o chão incerto e poeirento.
Caminho com dificuldade,
o sol poente ofusca-me a visão.
Percorro outro caminho, o da memória
que, como o xisto, se esboroa com o tempo.
Firme, a mão do meu pai segura a minha mão.
Regina Gouveia
Finalmente e evocando tardiamente o Dia da Mulher, deixo-vos com “A Calçada de Carriche” de António Gedeão
Não sou muito apologista destes dias dedicados a algo. Considero que todos os dias deviam ser dias de poesia, do pai, da mãe , da criança, da mulher, da árvore . Mas dado que tais dias existem decidi entrar na onda…
A propósito do Dia da Poesia coloco dois poemas entre muitos que poderia ter seleccionado e o mesmo acontece quanto ao Dia da Árvore para o qual seleccionei três poemas.
Todo o tempo é de poesia
Todo o tempo é de poesia
Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia
Todo o tempo é de poesia
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas qu'a amar se consagram.
Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação ao caos
à confusão da harmonia.
António Gedeão
Exploração
Qual exploradora, parti um dia.
Embrenhei-me na selva da vida
onde sabia andar escondida
a poesia
Encontrei-a
na luz ténue do sol ao fim do dia,
na molécula, no átomo, no quantum de energia,
nas leis de Newton, no conceito de entropia.
Encontrei-a
na reflexão da luz, na impulsão no ar,
no cheiro a maresia e nas algas do mar,
no orvalho, na geada, na chuva, no luar.
Encontrei-a
no ínfimo e no imenso que a vista não alcança,
nas rugas dum idoso, no rir de uma criança,
numa tela, num concerto, numa dança.
Encontrei-a
no voo da gaivota, na pétala da flor,
na chama que tremula e se multiplica em cor
e que irradia energia na forma de calor
Encontrei-a
nas estrelas, nas galáxias mais distantes,
no olhar apaixonado daqueles dois amantes,
nos extintos dinossauros de dimensões gigantes.
Encontrei-a
em medusas, corais, nos fundos oceanos,
no vento a agitar nas árvores os ramos,
em pinturas rupestres com vários milhares de anos
Encontrei-a
na violeta escondida no canto do jardim
e no frasco que continha essência de jasmim.
Tentei então guardá-la só para mim.
Foi assim que ela se evolou
e de novo eu aqui estou
a procurá-la.
Regina Gouveia
As folhas secas dos plátanos
As folhas dos plátanos
desprendem-se e lançam-se na aventura do espaço,
e os olhos de uma pobre criatura
comovidos as seguem.
São belas as folhas dos plátanos
quando caem, nas tardes de Novembro
contra o fundo de um céu desgrenhado e sangrento.
Ondulam como os braços da preguiça
no indolente bocejo.
Sobem e descem, baloiçam-se e repousam,
traçam erres e esses, ciclóides e volutas,
no espaço escrevem com o pecíolo breve,
numa caligrafia requintada, o nome que se pensa,
e seguem e regressam,
dedilhando em compassos sonolentos
a música outonal do entardecer.
São belas as folhas dos plátanos espalhadas no chão.
Eram lisas e verdes no apogeu
da sua juventude em clorofila,
mas agora, no outono de si mesmas,
o velho citoplasma, queimado e exausto pela luz do Sol,
deixou-se trespassar por afiados ácidos.
A verde clorofila, perdido o seu magnésio,
vestiu-se de burel,
de um tom que não é cor,
nem se sabe dizer que nome tenha,
a não ser o seu próprio,
folha seca de plátano.
A secura do Sol causticou-a de rugas,
um castanho mais denso acentuou-lhe os nervos,
e esta real e pobre criatura
vendo o solo coberto de folhas outonais
medita no malogro das coisas que a rodeiam:
dá-lhes o tom a ausência de magnésio;
os olhos, a beleza.
António Gedeão
A uma cerejeira em flor
Acordar, ser na manhã de Abril
a brancura desta cerejeira;
arder das folhas à raiz,
dar versos ou florir desta maneira.
Abrir os braços, acolher nos ramos
o vento, a luz, ou o quer que seja;
sentir o tempo, fibra a fibra,
a tecer o coração de uma cereja.
Eugénio de Andrade
Prodígio
Prodigiosa aquela cerejeira com seus frutos.
Sensual, rubro o epicarpo, carnudo, nacarado o mesocarpo
da pudica semente protecção.
Tal como se fora a vez primeira, saboreio uma cereja calmamente num misto de volúpia e devoção.
Regina Gouveia
A propósito do Dia do Pai , no pssado dia 19, coloco o texto morreste-me de José Luís Peixoto, para mim um dos textos mais belos que o autor escreveu, e um poema meu relativamente recente
Morreste-me
Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se
continuasse. Diante de mim, as ruas varridas, o sol enegrecido de luz a limpar asse
continuasse. Diante de mim, as ruas varridas, o sol enegrecido de luz a limpar as
casas, a branquear a cal; e o tempo entristecido, o tempo parado, o tempo
entristecido e muito mais triste do que quando os teus olhos, claros de névoa e
maresia distante fresca, engoliam esta luz agora cruel, quando os teus olhos
falavam alto e o mundo não queria ser mais que existir. E, no entanto, tudo como
se continuasse. O silêncio fluvial, a vida cruel por ser vida. Como no hospital.
Dizia nunca esquecerei, e hoje lembro-me. Rostos tornados desconhecidos,
desfigurados na minha certeza de perder-te, no meu desespero desespero. Como
no hospital. Não acredito que possas ter esquecido. Enquanto esperava pela
minha mãe e pela minha irmã, as pessoas passavam por mim como se a dor que
me enchia não fosse oceânica e não as abarcasse também. As mulheres falavam,
os homens fumavam cigarros. Como eu, esperavam; não a morte, que nós, seres
incautos, fechamos-lhe sempre os olhos na esperança pálida de que, se não a
virmos, ela não nos verá. Esperavam. Num carro demasiado rápido, a minha
mãe, curvada de perder o que possuía, e a minha irmã. Os homens e as mulheres
falavam e fumavam ainda quando subimos. No quarto, numa cama qualquer que
não a tua, o teu corpo, pai. Talvez distante, preso num olhar entreaberto e
amarelado, respiravas ofegante. O ar com que lutavas, lutavas sempre, gritava o
seu caminho rouco. Pelo nariz, entrava o tubo que te sustinha. Aos pés da cama,
a minha mãe calada, viúva de tudo. À cabeceira, a minha irmã, eu. Cortinas de
plástico, biombos de banheira separavam-nos das outras camas. Pousei-te as
mãos nos ombros fracos. Toda a força te esmorecera nos braços, na pele ainda
pele viva. E menti-te. Disse aquilo em que não acreditava. Ao olhar amarelo,
ofegante, disse que tudo serias e seríamos de novo. E menti-te. Disse vamos
voltar para casa, pai; vamos que eu guio a carrinha, pai; só enquanto não puder,
pai; vá, agora está fraco mas depois, pai, depois, pai. Menti-te. E tu, sincero, a
dizeres apenas um olhar suplicante, um olhar para eu nunca mais esquecer. Pai.
À hora, mandaram-nos sair. Quando saímos, agarrados como naúfragos, a luz
abundante bebia-nos. (…)
José Luís Peixoto
Recordações da infância
Muros de xisto,
tal como outrora cobertos de silvas,
ostentando amoras.
Caminhos.
Este já foi ribeiro, o ribeiro dos linhos.
Já não existe ribeiro, tão pouco o linho.
O pó esvoaça lento
por sobre o chão incerto e poeirento.
Caminho com dificuldade,
o sol poente ofusca-me a visão.
Percorro outro caminho, o da memória
que, como o xisto, se esboroa com o tempo.
Firme, a mão do meu pai segura a minha mão.
Regina Gouveia
Finalmente e evocando tardiamente o Dia da Mulher, deixo-vos com “A Calçada de Carriche” de António Gedeão
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Festival de poesia...esta entrada dá para uma semana de contemplação....obrigada. Já pus uma tua no meu blogue, de tantas que me enviaste....obrigada Amiga!
ResponderEliminarBom Domingo cheio de sol....
Que mais posso eu dizer Regina a não ser PARABÉNS. Lindos os seus poemas. Óptima a sua escolha.
ResponderEliminarUm beijo.
Obrigada às duas.
ResponderEliminarGostar de poesia é, sem dúvida, um elo que nos une.
Bjs
Regina