Eis a crónica de Carlos Fiolhais de hohe in de Rerum
Natura
O Estado português está quase falido. Um bom indicador da proximidade da falência é a falta de papel nos serviços públicos. Neste final do ano, já não há papel nas universidades e nas repartições de impostos, e só restam algumas folhas nas esquadras de polícia.
Eu sabia que, nas instituições de ensino superior, há já alguns meses que o papel estava em racionamento, em face do drástico aperto orçamental. Agora acabou. Os cursos e projectos que eram de papel e lápis passaram a ser só de lápis, aproveitando-se as costas do papel usado. O pior é que a maior parte dos cursos e projectos exigem experiências laboratoriais. O ministro da Educação e Ciência, um renomado matemático, não sentirá porventura com suficiente acuidade as necessidades dos químicos, que além de papel e lápis precisam de vidros e reagentes, pelo que foi bastante oportuna a reacção dos reitores, em nome dos docentes e investigadores.
Recentemente, numa Repartição de Finanças onde fui cumprir uma obrigação fiscal, fiquei a saber que lá também já não há papel. Quiseram não só ver o meu cartão de cidadão, um costume muito português, como também ficar com fotocópia dele, um outro costume muito nosso. Não sei por que razão os serviços do Estado querem, repetidamente, cópia de informação que, algures, lá têm e poderiam obter facilmente se acaso falassem uns com os outros. Mas, habituado que estou a passar o cartão a funcionários do Estado, autorizei o que estava à minha frente a fazer a respectiva cópia. Fiquei, porém, surpreso quando ouvi que eu é que tinha de entregar a cópia. Como contribuinte empenhado numa solução rápida, prontifiquei-me a ajudar do outro lado do balcão. Mas não, ali ninguém, nem eles nem eu, podia fotocopiar. Porquê? Porque, disseram-me, não havia papel. Ao faltar nos cofres o papel-moeda, estava a faltar nos serviços a moeda para o papel. Só então me apercebi das verdadeiras proporções da crise: As Finanças, que sempre tinham tido montes de papel, agora nem uma resma têm. Eu, que não tinha comigo nenhuma folha, ofereci-me, condoído, para ir buscar algum papel a minha casa (estaria a casa de banho deles também carente e não seria melhor trazer um rolo?). Não, não queriam o meu papel. O meu papel seria ir ao quiosque da esquina pedir uma fotocópia. Queriam de mim um contributo, ainda que modesto, ao comércio local. Estava perante uma parceria público-privada.
Foi nessa altura que me surgiu, num clique, uma saída para a falta de papel nas Finanças. Simples, muito simples. As Finanças cobrariam as fotocópias aos contribuintes que ousassem aparecer com os documentos mas sem as cópias na mão. Como nas Finanças um cidadão deixa o couro e o cabelo, pagar uma mera folha A4 não seria para ele significativo. Todos juntos pagaríamos a resma. Mas não, assim como não aceitaram o meu papel, também não quiseram saber do meu simplex. Uma vez que a negativa foi de um funcionário, que não funciona por míngua de papel, pode ser que que a ministra de Estado e das Finanças aceite o pagamento das fotocópias como uma ajuda ao Estado depauperado. O Ministério das Finanças poderia até lançar um imposto do papel. Quer papel? Paga! As florestas agradeceriam.
Estou, claro, a partir do princípio de que as Finanças, viciadas como estão em papel, não podem passar sem ele. Mas o facto é que podem, se fizerem um conveniente desmame. Hoje em dia há scanners e computadores baratos que podem fazer e guardar uma cópia de qualquer documento, prescindindo por completo do papel. Na Repartição podiam ter digitalizado o meu cartão e guardado os bits bem guardadinhos. Receio, contudo, que o nosso Estado continue a andar aos papéis, sendo moderno só na aparência. É certo que a Direcção-Geral dos Impostos envia cartas intimidativas pela Internet, mas não é menos certo que elas seguem amiúde para o destino errado. Há dias recebi um emailoficial ameaçando-me por não ter feito a declaração do IRS, quando eu a tinha apresentado no prazo. Não perderam o papel, porque a declaração tinha sido electrónica, mas devem ter perdido os bits. Sugiro que, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, os peçam à NSA norte-americana, que controla a circulação electrónica mundial.
Apesar do desgoverno, a falência do Estado ainda não está consumada. Pouco depois do episódio das Finanças tive que ir à polícia apresentar um documento que não encontrei no porta-luvas do carro durante uma operação stop. O meu cartão de cidadão foi novamente solicitado para a inevitável fotocópia (a milésima cópia que o Estado fazia dele) e, aleluia, naquele lugar, havia fotocópias SCUT, sem custos para o utilizador. Em Portugal, os polícias aindam podem fazer coisas que os professores universitários e os trabalhadores fiscais não conseguem. O Dr. Miguel Macedo ainda tem o papel que falta ao Doutor Crato e à Doutora Albuquerque.
Este e outros comportamentos, nomeadamente
de organismos do estado, lembram-me o aforismo: poupar no farelo para esbanjar
na farinha. É que nem no farelo...
O caso do papel é paradigmático basta ver, por
exemplo, o contributo do ME ao exigir relatórios e mais relatórios, fichas e
mais fichas, etc. Mas há muito mais. Muitos dos aparelhos de ar condicionado de
organismos público e não só, estão de tal modo mal regulados que ao entrar nos
mesmos se treme de frio no verão e se transpira no inverno(infelizmente não é um fenómeno
apenas português).
Nas casas de banho, as torneiras “automáticas” estão genericamente mal reguladas. Nalgumas já tenho feito a experiência de lavar as
mãos dos meus quatro netos, as minhas, e
após as cinco lavagens a água continuar ainda a correr.
Quanto não poderiam poupar estado e cidadãos se fizessem um uso
racional de bens essenciais? Mas é mais fácil decretar reduções de salários(ALGUNS)
e pensões(ALGUMAS), aumento de impostos, etc, etc
Sempre que falo no uso racional da água não resisto a referir este
vídeo
Termino com alguns poemas meus de um projecto ainda não publicado
Requiem pela água e com imagens do Rio da
Prata
I
Docemente
a chuva foi caindo
cobrindo
a terra mãe ressequida, exangue.
Da
cópula gerou-se nova vida e eis
campos verdejantes,
searas
ondulantes e amoras rubras de
sumo cor de sangue.
II
Era o
riso cristalino das crianças que
se confundia com o correr da
água no regato,
era a gota de orvalho
sobre a rosa
qual
pérola que a ostra protege,mãe
ciosa,
era,
nas gotas de chuva, a luz refractada
a desdobrar-se
num arco-íris imenso
como
que a segurar o céu cinzento
e denso.
III
Deixou
de cair a chuva benfazeja
não
por vingança, apenas por cansaço,
e o
deserto vai avançando passo a
passo.
Suplicante
o olhar perdido da criança,
que
passa fome e sede sem entender
porquê.
Vazio
o olhar do velho sem esperança
que não implora mais, pois
já não crê.
IV
A
água cantava na fonte onde corria,
outrora.
O
cantar, o correr eram seu mister.
Agora
deixou de correr. Não corre nem
canta, só chora .