sexta-feira, 18 de junho de 2010
Portugal ficou mais pobre
Portugal é um país economicamente pobre creio que essencialmente pela sucessivas más “gestões” dos seus recursos. Mas é um país rico no que respeita a recursos humanos. Também aqui, o país não trata da melhor maneira esses recursos. E a prová-lo está José Saramago, que acabou por se refugiar no país vizinho, depois de maltratado por medíocres do seu país. Foi com grande tristeza que recebi a notícia da sua morte .
Há já muitos anos, era eu sócia do Círculo de Leitores quando encomendei o livro Viagem a Portugal, no pressuposto que seria um vulgar roteiro turístico. O nome do autor na altura não me dizia nada. Comecei a lê-lo e fiquei fascinada. A partir daí fui adquirindo praticamente todas as suas obras, as já então publicadas e as que o foram depois, inclusive textos para crianças.. Mais conhecido como ficcionista, publicou poesia. E dois dos seus poemas, utilizei-os muitas vezes quando docente e continuo ainda a utilizá-los em intervenções para público juvenil e adulto. Aqui ficam esses poemas.
Física
Colho esta luz solar à minha volta,
No meu prisma a disperso e recomponho:
Rumor de sete cores, silêncio branco.
Como flechas disparadas do seu arco,
do violeta ao vermelho percorremos
O inteiro espaço que aberto no suspiro
Se remata convulso em grito rouco.
Depois todo o rumor se reconverte
tornam as cores ao prisma que define
À luz solar de ti e ao silêncio.
Química
Sublimemos, amor. Assim as flores.
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.
Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende
José Saramago, in Poemas possíveis
Como referi, tenho grande parte das suas obras, muitas das quais já reli várias vezes. Considero uma pena que tenha publicado "As pequenas memórias" que, na minha modestíssima opinião, fica muito aquém de todas as suas outras obras não só livros como vários textos. Escolhi dois textos que considero magníficos para aqui colocar
Carta para Josefa, minha avó
Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga
do teu tempo - e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e
deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e
lenha, albufeiras de água. Viste nascer o Sol todos os dias. De todo o pão que
amassaste se faria um banquete universal! Criaste pessoas e gado, meteste os
bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me
histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de
morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira sete vezes engravidaste, sete
vezes deste à luz.
Não sabes nada do Mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de
literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de
palavras práticas, um vocabulário elementar.Com isto viveste e vais
vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos da rua, aos casamentos
de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por
motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em
coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietnam é apenas um som bárbaro que
não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma
coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja.(Contaste-me tu,
ou terei sonhado que o contavas?...) Transportas contigo o teu pequeno
casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu
riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.
Estou diante de ti e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não
entendo. Vieste a este Mundo e não curaste de saber o que é o Mundo. Chegas ao
fim da vida, e o Mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma
interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua
herança: quinhentas palavras, um quintal, a que em cinco minutos se dá a
volta, uma casa de telha vã e chão de terra batida. Aperto a tua mão calosa,
passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos,
partidos pelo peso dos carregos- e continuo a não entender. Foste bela,
dizes, e bem vejo que és inteligente. Porque foi então que te roubaram o
mundo? Quem to roubou? Mas disto entendo eu, e dir-te-ia o como, o porquê e
o quando se soubesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem
ti- e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não
são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não
acusas- e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira
da porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada
sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores
assombradas, e dizes com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o
fogo da tua adolescência nunca perdida: "O mundo é tão bonito, e eu tenho
tanta pena de morrer!"
É isto que eu não entendo- mas a culpa não é tua.
De como a personagem foi mestre e o autor aprendiz
(um dos discursos de Estoclomo)
(…) Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era tão bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tomaria a ver.
A finalizar e como uma modestíssima homenagem a um dos meus autores preferidos deixo o meu poema Afectos
Hoje eu decidi escrever um poema com os afectos por tema.
Podia ser sobre a buganvília, sobre a família,
sobre o gosto do mel, sobre o bolero de Ravel,
sobre o meu filho Miguel , que em pequenino,
os olhos a cintilar de amor, aplaudia ao ver qualquer flor a que chamava tanta,
sobre os livros de Florbela Espanca, Pessoa, Saramago, Aquilino
Manuel Alegre, Gedeão, Quental.
Podia ser sobre o Natal com a família reunida à mesa e as chaminés a expelir fumo
Podia ser sobre a Cláudia, sobre a Teresa sobre o meu filho Nuno
que me dizia, em pequenito, gosto de ti até ao infinito.
Podia ser sobre o cheiro do tomilho, o sabor da pamonha de milho,
sobre o meu gato andarilho, sobre a minha mãe, que cantava tão bem
de Verdi, a Traviata, de Schubert, a serenata.
Podia ser sobre o alecrim que, aos molhos, faz chorar os olhos,
como cantava o meu pai.
Podia ser sobre o meu bonsai
Podia ser sobre as cadeiras que herdei da avó,
tal como do avô a caixa do rapé,
podia ser sobre as colchas em filé, rede de nó, rendadas, bordadas,
feitas por várias tias.
Podia ser sobre as tristezas e as alegrias
que partilho, por inteiro com o marido, amante e companheiro.
Podia ser sobre os chapéus da mãe e as suas luvas,
podia ser sobre o gosto das uvas nas vindimas, em Setembro.
Podia ser sobre Paris, sobre Veneza,
sobre as conversas à mesa
ou sobre as histórias ao serão, em Dezembro.
sobre Mozart, Chopin, sobre Gauguin, Renoir,
sobre o sol, sobre a lua, sobre o mar,
sobre a areia quente no verão,sobre a neve a cobrir o chão,
sobre a amizade, sobre a saudade.
Mas eu decidi que ia escrever um poema
tendo os afectos por tema.
E o poema que escrevi fala de afectos
Fala de afectos nas linhas, e nas entrelinhas,
fala de afectos através de imagens e de viagens pelo espaço e pelo tempo
Os afectos estão dispersos, implícitos nos vários versos.
Com afectos povoei meu pensamento
Obrigada José Saramago. Até sempre.
Há já muitos anos, era eu sócia do Círculo de Leitores quando encomendei o livro Viagem a Portugal, no pressuposto que seria um vulgar roteiro turístico. O nome do autor na altura não me dizia nada. Comecei a lê-lo e fiquei fascinada. A partir daí fui adquirindo praticamente todas as suas obras, as já então publicadas e as que o foram depois, inclusive textos para crianças.. Mais conhecido como ficcionista, publicou poesia. E dois dos seus poemas, utilizei-os muitas vezes quando docente e continuo ainda a utilizá-los em intervenções para público juvenil e adulto. Aqui ficam esses poemas.
Física
Colho esta luz solar à minha volta,
No meu prisma a disperso e recomponho:
Rumor de sete cores, silêncio branco.
Como flechas disparadas do seu arco,
do violeta ao vermelho percorremos
O inteiro espaço que aberto no suspiro
Se remata convulso em grito rouco.
Depois todo o rumor se reconverte
tornam as cores ao prisma que define
À luz solar de ti e ao silêncio.
Química
Sublimemos, amor. Assim as flores.
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.
Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende
José Saramago, in Poemas possíveis
Como referi, tenho grande parte das suas obras, muitas das quais já reli várias vezes. Considero uma pena que tenha publicado "As pequenas memórias" que, na minha modestíssima opinião, fica muito aquém de todas as suas outras obras não só livros como vários textos. Escolhi dois textos que considero magníficos para aqui colocar
Carta para Josefa, minha avó
Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga
do teu tempo - e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e
deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e
lenha, albufeiras de água. Viste nascer o Sol todos os dias. De todo o pão que
amassaste se faria um banquete universal! Criaste pessoas e gado, meteste os
bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me
histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de
morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira sete vezes engravidaste, sete
vezes deste à luz.
Não sabes nada do Mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de
literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de
palavras práticas, um vocabulário elementar.Com isto viveste e vais
vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos da rua, aos casamentos
de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por
motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em
coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietnam é apenas um som bárbaro que
não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma
coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja.(Contaste-me tu,
ou terei sonhado que o contavas?...) Transportas contigo o teu pequeno
casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu
riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.
Estou diante de ti e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não
entendo. Vieste a este Mundo e não curaste de saber o que é o Mundo. Chegas ao
fim da vida, e o Mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma
interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua
herança: quinhentas palavras, um quintal, a que em cinco minutos se dá a
volta, uma casa de telha vã e chão de terra batida. Aperto a tua mão calosa,
passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos,
partidos pelo peso dos carregos- e continuo a não entender. Foste bela,
dizes, e bem vejo que és inteligente. Porque foi então que te roubaram o
mundo? Quem to roubou? Mas disto entendo eu, e dir-te-ia o como, o porquê e
o quando se soubesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem
ti- e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não
são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não
acusas- e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira
da porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada
sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores
assombradas, e dizes com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o
fogo da tua adolescência nunca perdida: "O mundo é tão bonito, e eu tenho
tanta pena de morrer!"
É isto que eu não entendo- mas a culpa não é tua.
De como a personagem foi mestre e o autor aprendiz
(um dos discursos de Estoclomo)
(…) Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era tão bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tomaria a ver.
A finalizar e como uma modestíssima homenagem a um dos meus autores preferidos deixo o meu poema Afectos
Hoje eu decidi escrever um poema com os afectos por tema.
Podia ser sobre a buganvília, sobre a família,
sobre o gosto do mel, sobre o bolero de Ravel,
sobre o meu filho Miguel , que em pequenino,
os olhos a cintilar de amor, aplaudia ao ver qualquer flor a que chamava tanta,
sobre os livros de Florbela Espanca, Pessoa, Saramago, Aquilino
Manuel Alegre, Gedeão, Quental.
Podia ser sobre o Natal com a família reunida à mesa e as chaminés a expelir fumo
Podia ser sobre a Cláudia, sobre a Teresa sobre o meu filho Nuno
que me dizia, em pequenito, gosto de ti até ao infinito.
Podia ser sobre o cheiro do tomilho, o sabor da pamonha de milho,
sobre o meu gato andarilho, sobre a minha mãe, que cantava tão bem
de Verdi, a Traviata, de Schubert, a serenata.
Podia ser sobre o alecrim que, aos molhos, faz chorar os olhos,
como cantava o meu pai.
Podia ser sobre o meu bonsai
Podia ser sobre as cadeiras que herdei da avó,
tal como do avô a caixa do rapé,
podia ser sobre as colchas em filé, rede de nó, rendadas, bordadas,
feitas por várias tias.
Podia ser sobre as tristezas e as alegrias
que partilho, por inteiro com o marido, amante e companheiro.
Podia ser sobre os chapéus da mãe e as suas luvas,
podia ser sobre o gosto das uvas nas vindimas, em Setembro.
Podia ser sobre Paris, sobre Veneza,
sobre as conversas à mesa
ou sobre as histórias ao serão, em Dezembro.
sobre Mozart, Chopin, sobre Gauguin, Renoir,
sobre o sol, sobre a lua, sobre o mar,
sobre a areia quente no verão,sobre a neve a cobrir o chão,
sobre a amizade, sobre a saudade.
Mas eu decidi que ia escrever um poema
tendo os afectos por tema.
E o poema que escrevi fala de afectos
Fala de afectos nas linhas, e nas entrelinhas,
fala de afectos através de imagens e de viagens pelo espaço e pelo tempo
Os afectos estão dispersos, implícitos nos vários versos.
Com afectos povoei meu pensamento
Obrigada José Saramago. Até sempre.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
A morte de Saramago foi realmente uma grande perda. Também fiquei muito triste. E os poemas Física e Química, foi através da Regina que os conheci, apesar de ter já lido muitas obras do nosso Prémio Nobel, de que gostei bastante.
ResponderEliminarO seu poema é muito lindo.
Um abraço grande.
Bela homenagem de quem o conheceu por dentro e ama aquilo que exprime. Não conheço Saramago, nem nunca tive grande apetência pelos seus escritos - sou sincera, detesto a hipocrisia dos que dizem ter lido tudo só porque compraram os livros beiges da colecção e os têm na prateleira da estante.
ResponderEliminarGostei muito desta entrada, é diferente, é sentida e dá vontade de vir a conhecer melhor o Autor, que foi embora fisicamente deste mundo, mas que ficará certamente, como um dos grandes vultos da cultura portuguesa.
Impressionou-me em especial o texto sobre a Avó, acho-o maravilhoso.
O meu neto de 4 anos anteontem disse à mãe:" Mãmã posso ser caixeiro viajante quando for grande, é que eu queria conhecer mais mundos porque só conheço este." . Vem a propósito.
Quando vivi na so called provincia, durante cinco anos, lidei com pessoas extraordinárias que não sabiam ler nem escrever, embora já tivessem filhos na escola. Uma delas dizia-me: Sabe, eu não sei ler, mas tenho mais expediente que muita gente!!"
Não é a educação formal que faz a riqueza interior do indivíduo, mas a sua capacidade e reflectir e apreciar o pouco ou muito que lhe é dado.
Bjo
Graciete
ResponderEliminarFico contente em saber que contribuí um pouquinho para a divulgação da obra de Saramago
Virgínia
Talvez neste momento da viagem de Saramago, te sugira começares por A viagem do Elefante, mas eu tenho quase toda a sua obra (que li e alguma reli..)e psso emprestar-te o que quiseres
Quanto ao teu neto que visão tão fantástica aos quatro anos
Um abraço às duas